Em
tempos de pandemia, tem proliferado o número de eventos e artigos ressaltando a
importância da negociação e da renegociação de contratos, a relevância do uso
de métodos consensuais para se buscar soluções mais adequadas para os conflitos
que estão surgindo neste momento, entre várias iniciativas voluntárias de
empresas e pessoas que oferecem alternativas para as situações atípicas e
imprevisíveis que muitos estão tendo que enfrentar neste momento. Diante desse
cenário, ressurge com força o debate acerca da mudança cultural que se torna
ainda mais urgente em nosso país. Os movimentos nacionais pelo uso dos métodos
consensuais de resolução de disputas, entre eles a conciliação e a mediação, já
haviam recebido a adesão do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública, entre vários outros órgãos. Porém, esse não é um debate que
tem se efetivado da forma como deveria ser para, de fato, gerar os resultados
qualitativos que a nossa sociedade tanto anseia.
Inicialmente,
cabe fazer uma viagem no tempo e relembrar a todos que esse movimento não é
novo. Já fomos brindados na nossa história com normas que estabeleciam,
inclusive, quase uma obrigatoriedade do uso de formas consensuais de resolução
de conflitos como requisito preliminar para o exercício do tão amado e
idolatrado, salve, salve, "direito de ação" Na época em que o Brasil
ainda era colônia de Portugal, aplicavam-se em nosso país as chamadas
Ordenações Filipinas de 1595, que, no Livro 3º, T. 20, §1º, faziam a seguinte
previsão: "E no começo da demanda dirá o Juiz a ambas as partes, que antes
que façam despezas, e se sigam entre elles os ódios e dissensões, se devem
concordar, e não gastar suas fazendas por seguirem suas vontades, porque o
vencimento da causa sempre he duvidoso (...)". E mais. Ao se tornar um
país independente, foi determinado na nossa primeira Constituição, em 1824, no
seu artigo 161, que "sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da
reconciliação, não se começará Processo algum".
Porém,
é importante compreender também algumas das razões pelas quais o uso e a
indicação desses métodos ainda sofrem tanta resistência em nosso país.
Primeiro, pelo fato de que essas normas acima transcritas parecem ter sido
simplesmente ignoradas pela nossa sociedade. Em algum momento da evolução do
Direito em nosso país, foi feita a opção (voluntária ou não) pela adesão ao
princípio do "monopólio da jurisdição pelo Estado". Decidimos, por
alguma razão, elevar o "direito de ação" ao patamar de 11º mandamento
divino e todos aqueles que levantassem suas vozes contra a divindade desse
direito estariam condenados às chamas do inferno.
Dentro
dessa lógica, ao trazer o tema para o debate social, todas as iniciativas e
movimentos feitos por profissionais de excelência e que construíram a história
desses institutos no Brasil, especialmente da mediação, não receberam o
acolhimento amplo e efetivo da nossa sociedade, até que o próprio Estado
tivesse decidido chamar para si essa tarefa. E, neste aspecto, talvez apenas
neste, o movimento pela solução consensual dos conflitos encabeçado pelo
Conselho Nacional de Justiça, e que se formalizou em 2010 com a Resolução nº
125, foi necessário para promover a tão esperada difusão dos institutos da
conciliação e da mediação. Mas, de novo, não foi o CNJ e nem a Resolução nº 125
que iniciaram esse movimento.
Além
do que estava disposto nas Ordenações Filipinas de 1595 e da Constituição de
1824, a tentativa de se estimular o uso de formas consensuais sempre fez parte
da nossa legislação. E não se tratam apenas de resquícios históricos do nosso
período colonial. Se avançarmos no tempo, basta analisar o conteúdo do
preâmbulo da nossa atual Constituição de 1988, que afirma que a nossa sociedade
está "fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias". E essa lógica
foi mantida em diversas leis que se seguiram no nosso país. Porém, sempre com o
foco no uso desses métodos consensuais, especificamente a conciliação, dentro
da estrutura disponibilizada pelo próprio Poder Judiciário. Assim, por exemplo,
temos o texto do artigo 125 do Código de Processo Civil de 1973, que estabelece
como dever do magistrado "tentar, a qualquer tempo, conciliar as
partes". No mesmo sentido, vieram os Juizados de Pequenas Causas de 1984 e
os Juizados Especiais em 1995, dando ênfase ao uso da conciliação, "sempre
que possível". Não é sequer necessário comentar aqui a baixa qualidade
daquilo que se tem chamado de "conciliação" nesses ambientes
judiciais.
Portanto,
o que se percebe é que o nosso legislador já havia entendido que a conciliação
e o uso de quaisquer formas de resolução de conflitos deveria ser estimulados,
mas manteve sempre o foco no Poder Judiciário. E essa lógica foi replicada na
estrutura proposta pelo CNJ na elaboração da sua tão festejada Resolução nº
125, em 2010. E seguiu no mesmo caminho o nosso Código de Processo Civil de
2015 ao incentivar o uso da mediação e da conciliação judiciais. A ordem era
estimular as soluções amigáveis e a busca do consenso, mas sem abrir mão do controle
e do poder de fiscalizar o que a sociedade está fazendo, do que está sendo
negociado. Com isso, fortalecia-se a ideia do "monopólio da jurisdição
pelo Estado". Sequer a Lei Brasileira de Mediação, Lei nº 13.140 de 2015,
conseguiu se afastar do Poder Judiciário, e viu-se também obrigada a tratar da
"mediação judicial".
Importante
deixar claro que não há aqui um posicionamento contrário a qualquer iniciativa
ou movimento que seja (ou tenha sido) feito pelo Poder Judiciário de também
oferecer seu espaço para a realização de procedimentos consensuais de resolução
de disputas. Isso é válido e, para muitos, algo necessário. Porém, ao longo da
história, o Estado brasileiro, especialmente os Poderes Legislativo e
Judiciário, tem constantemente perdido a oportunidade de estimular e permitir
que os cidadãos assumam suas responsabilidades e chamem para si o dever e a
obrigação de resolverem por si próprios os seus conflitos. A cultura
paternalista e a ideia do Estado máximo continuam imperando em nosso país também
nesse tema. Algo prejudicial para o desenvolvimento de uma sociedade adulta,
responsável e senhora das suas escolhas. Aliás, para aqueles que realmente
entendem de mediação, esses são pressupostos essenciais e que deveriam estar na
base de qualquer forma de solução consensual de conflitos: empoderamento e
responsabilização dos sujeitos.
Com
isso, a realidade que se tem enfrentado na prática desses métodos é
desestimulante. O Poder Judiciário não tem conseguido atender de forma adequada
e satisfatória ao que está proposto nas normas indicadas. Apesar de bem
redigidas, tanto a Resolução nº 125 de 2010 como o Código de Processo Civil de
2015 e também a Lei Brasileira de Mediação têm sido constantemente
desconsideradas e desrespeitadas. Não se tem aplicado as regras ali previstas
para uma efetiva capacitação de mediadores e conciliadores. Não têm tido os
Tribunais de Justiça condições de estruturar com a qualidade necessária seus
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) de forma a atender
a todas as comarcas do nosso país com a qualidade devida. Continuam até hoje os
mediadores e conciliadores trabalhando sem receberem a devida remuneração e
isso, inclusive, pelo fato de que o Poder Judiciário desrespeita a previsão
legal de que os serviços prestados nos Cejuscs devem ser pagos pelas partes e a
Justiça gratuita é algo excepcional. Magistrados têm constantemente ignorado as
regras legais a respeito da realização e agendamento das tais "audiências
de conciliação ou mediação" (nome este que, por si só, já mereceria um
artigo inteiro, tamanha sua imprecisão). Enfim, são inúmeras as dificuldades
enfrentadas.
Mas
nada disso precisaria estar acontecendo se o Estado tivesse dado conta de
confiar na sociedade e no cidadão brasileiro. Tudo poderia ser diferente se a
mensagem passada pelos portugueses tivesse sido ouvida. Não se deve iniciar
qualquer demanda judicial sem que todas as possibilidades de solução amigável
tenham se esgotado. Algo que parece lógico para pessoas de bom senso, mas que
não se aplica, por não termos aprendido a fazer dessa forma. Nossas faculdades
de Direito replicam até hoje a cultura da sentença e do litígio, apesar de um
lento e gradativo movimento de mudança. O nosso legislador e o nosso Poder
Judiciário perderam e continuam perdendo oportunidades de estimular o uso
desses métodos no ambiente privado, extrajudicial.
Seria
tão mais positivo se as normas criadas pelo nosso legislador e pelo próprio CNJ
tivessem seguido em outra direção. Os institutos da conciliação e da mediação
talvez tivessem tido uma outra história se os usuários da Justiça tivessem sido
estimulados a utilizar esses institutos fora do Judiciário, com mediadores e
conciliadores devidamente preparados e capacitados, utilizando os serviços das
melhores e mais qualificadas câmaras privadas de mediação e conciliação. Se
tivéssemos seguido a mesma história e o mesmo caminho que a arbitragem seguiu
após a Lei nº 9.307 de 1996, talvez tivéssemos conseguido resultados melhores,
inclusive com a capacidade que esses métodos consensuais têm de atingir um
número ainda maior de pessoas e conflitos.
Mas
não é tarde. É possível repensar o nosso Direito. Partir para um sistema mais
lógico e que estimule a própria sociedade a dar conta dos seus conflitos e se
responsabilizar por eles. Muitos dirão que não temos maturidade para isso.
Dirão que não fomos educados para ter essa liberdade. Mas não se está dizendo
aqui que se trata de tarefa fácil. Educar demanda paciência e cuidado. Mudar
uma cultura leva anos, décadas. Mas é possível, se houver confiança e vontade.
E
o momento é propício. O retorno ao "novo normal" que virá depois
dessa pandemia é uma oportunidade para que a nossa sociedade reveja seus
conceitos. Podemos começar uma nova história. E a proposta é simples. Vamos
voltar a 1595. Vamos festejar a Constituição de 1824. E vamos, sobretudo,
entender que o Poder Judiciário não deve ser o único caminho. Boas e melhores
experiências nos esperam do lado de fora. Vamos negociar! Vamos conciliar!
Vamos mediar! Somos todos capazes!
Fonte: Consultor Jurídico