A 8ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu provimento ao recurso dos filhos
de um homem, aplicando à sobrepartilha o mesmo regramento que regeu a partilha.
Após a descoberta de um crédito junto ao estado, foi determinada a aplicação do
art. 1.790 do Código Civil, que dispõe condições para a participação de
companheiro na sucessão e, em 2017, foi declarado inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal – STF.
Em primeiro grau, o magistrado
entendeu que a sobrepartilha deveria obedecer ao regramento do art. 1.829,
inciso I, e a viúva seria inventariante. Tal decisão considerou o julgamento do
STF no Recurso Extraordinário 878.694, que afastou a diferença entre cônjuge e
companheiro para fins sucessórios. Com o julgado, o Tribunal declarou como
inconstitucional o art. 1.790 do CC.
Relator do caso em
segundo grau, o desembargador José Antônio Daltoé Cezar decidiu por evitar o
desequilíbrio entre os filhos e a viúva. Haveria, afinal, um benefício
desproporcional a ela, já que antes, além da meação, foi contemplada com
herança sobre os bens comuns (rateada com os filhos). Segundo o colegiado, que
proveu o recurso por unanimidade, a viúva seria contemplada com mais direito
como companheira do que se fosse casada. Na sobrepartilha, herdaria também
sobre o bem particular.
Decisão é vanguardista e importante precedente na
matéria, diz Delma Ibias
Para a advogada
Delma Silveira Ibias, vice-presidente da seção Rio Grande do Sul do Instituto
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o julgado do STF foi “de extrema
importância” ao contrariar a Carta Magna, que “diferenciava
desproporcionalmente as entidades familiares da união estável e do casamento”.
Em contrapartida,
segundo ela, restam dúvidas sobre como lidar com casos como o ocorrido no Rio
Grande do Sul. Delma atuou no processo em parceria com o advogado Diego
Oliveira da Silveira, também membro do IBDFAM. Eles são autores de artigo sobre
a necessidade de modulação dos efeitos da decisão do STF pela
inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil.
“Existe a
controvérsia na aplicação do art. 1.790 do CCB nos processos de sobrepartilha,
em face da declaração de inconstitucionalidade pelo STF e em virtude da
discussão se a sobrepartilha deveria ser regida pelas mesmas regras da partilha
ou se pelas normas vigentes no momento da sobrepartilha”, explica a advogada.
“A decisão realizada
com repercussão geral do STF não foi afastada pelo julgamento realizado pelo
TJRS. Discutiu-se a extensão dos efeitos da declaração da inconstitucionalidade
da sucessão da companheira para a hipótese de uma sobrepartilha”, comenta
Delma.
Segundo ela, o
acórdão é vanguardista e um importante precedente. “Acredita-se que essa tenha
sido a primeira decisão de um Tribunal de Justiça sobre essa matéria. Ademais,
a dúvida sobre qual a regra jurídica (art. 1.790 ou o art. 1.829, I do CC)
deveria ser aplicada nos processos de sobrepartilha foi dirimida pelo TJRS.”
“Se não fosse assim,
a companheira receberia mais do que se fosse casada, eis que já teria
participado da herança dos bens comuns (fora a sua meação) e participaria na
sobrepartilha da herança dos bens particulares (conforme prevê a regra do art.
1.829, I do CCB), enquanto que o cônjuge não herda nos bens comuns”, acrescenta
Delma.
Artigo declarado inconstitucional já não devia ser aplicado, defende Ana Luiza Nevares
Já Ana Luiza Maia
Nevares, vice-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do
IBDFAM, diverge da decisão. Trata-se, segundo ela, de uma situação peculiar, em
que se discute a aplicação de um artigo já declarado inconstitucional. Para a
advogada, o entendimento do STF deveria prevalecer.
“Não obstante o fato
de ter sido aplicado o art. 1.790 na partilha anterior, uma vez que ele foi declarado
inconstitucional, devem, então, os novos pronunciamentos judiciais não mais
aplicá-lo, ainda que tenha havido uma partilha anterior aplicando os seus
preceitos”, defende Ana Luiza.
Ela acredita que o
art. 1.829 era o mais adequado, já que promove a igualdade entre cônjuge e
companheiro na sucessão hereditária. A advogada pontua que o artigo aplicado
pelo TJRS é inconstitucional “na medida em que viola a igualdade no tratamento
sucessório”.
“Considerando que a
sucessão hereditária tem como fundamento a família, nesse aspecto, casamento e
união estável não deveriam ser tratados de forma diferente. Por esse motivo,
entendo que o 1.790 é inconstitucional e, nessa direção, festejo a decisão do
STF que o declarou dessa forma”, diz Ana Luiza.
Segundo desembargador, tratamento diferenciado não
equivale a tratamento não isonômico
O desembargador do
TJRS Luiz Felipe Brasil Santos, membro do IBDFAM, que participou do julgamento,
defende a decisão. “Embora obviamente respeite e aplique – como não poderia
deixar de ser – o entendimento do STF acerca da inconstitucionalidade do art.
1.790, dele respeitosamente divirjo, por entender que o tratamento diferenciado
não equivale a tratamento não isonômico”.
“Ocorre que, a
depender de cada caso concreto (maior ou menor expressão do patrimônio
particular), a vantagem poderia ocorrer em prol do cônjuge ou do
companheiro(a). Tanto que, por esse fundamento, tanto o TJRS quanto o TJSP já
haviam se pronunciado, antes, pela inexistência de inconstitucionalidade desse
dispositivo, em incidentes de arguição de inconstitucionalidade julgados pelos
respectivos Órgãos Especiais”, prossegue o magistrado.
“A par disso, penso
que o ordenamento jurídico deve respeitar um espaço de liberdade para as
pessoas, e não impor tratamento sempre homogêneo para situações em que os
indivíduos escolheram entreter diferente formato de relacionamento afetivo. Tal
discussão, entretanto, evidentemente está superada ante a decisão do STF”, contrapõe
Luiz Felipe.
Ele diz que não
restam dúvidas quanto à admissão do companheiro como herdeiro necessário. “De
outro modo, haveria distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e
companheiros, o que foi vedado pela Corte Superior. É de lamentar apenas que os
Embargos Declaratórios opostos naquele feito, que poderiam afastar qualquer
dúvida a respeito, tenham sido rejeitados”, comenta.
De acordo com Luiz
Felipe, houve um ineditismo no referido agravo de instrumento, já que esbarrou
em situação não apreciada no julgamento do Supremo. “Em nome da segurança
jurídica, o STF assentou que ‘o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos
inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença
de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura
pública’”.
Ele explica que, no
caso concreto, havia sido realizada uma partilha extrajudicial – que envolvia
uma companheira e dois filhos exclusivos do autor da herança – anterior à
mudança de orientação jurisprudencial. Posteriormente ao julgamento do STF, as
partes tomaram conhecimento da existência de um bem particular do falecido. Sem
acordo, foi postulada sobrepartilha judicial.
“Se aplicada a nova
regra (art. 1.829, I, do CC, conforme orientação do STF), a companheira que,
além da meação, já herdara sua parte sobre os bens comuns, receberia agora
também sobre o bem particular, o que lhe daria um tratamento extremamente
vantajoso e não isonômico. Por isso, entendeu-se, na linha do voto que proferi
então, que, para evitar esse privilégio, deveria ser aplicada a regra do art.
1.790 do CCB, pois regras diferentes a duas etapas de um mesmo inventário
gerariam distorção incompatível com a equidade buscada no próprio julgamento da
Corte Superior”, assinala o desembargador.
O IBDFAM participou
como amicus curiae no julgamento do RE 878.694 pelo STF.