Gabriel de Sousa Pires
Introdução - O notariado à beira da
revolução digital
Vivemos um ponto de inflexão histórico.
Pela primeira vez, uma tecnologia não apenas sugere modelos genéricos ou
responde comandos simples, mas simula com coerência e profundidade a linguagem
jurídica. Ferramentas baseadas em inteligência artificial generativa - como
Chat GPT, Gemini e Claude - já redigem testamentos, contratos com cláusulas
complexas, aditamentos e justificações com fluência e rapidez.
Nesse novo cenário, em que o algoritmo
escreve, a pergunta central é inevitável: quem assegura a validade jurídica do
ato?
O crescimento vertiginoso da IA reacende
um debate sensível ao Direito: qual o verdadeiro valor da função notarial e
registral em uma era em que qualquer cidadão pode gerar um documento digital
com aparência jurídica sofisticada?
A resposta repousa em fundamentos
inegociáveis: a responsabilidade civil, a fé pública e o dever de controle de
legalidade exercido pelos delegatários do serviço extrajudicial. Em tempos de
automatização sedutora, é preciso reafirmar - com rigor técnico e visão
estratégica - o que pode ser delegado à máquina e o que permanece como
atribuição indelegável da autoridade humana.
Mais do que uma questão tecnológica,
trata-se de um reposicionamento institucional. A IA não é inimiga do notariado,
mas sua presença expõe uma urgência: modernizar sem diluir competências
essenciais. O tabelião não é um mero redator de modelos - é operador jurídico
com fé pública e poder estatal para conferir validade, eficácia e segurança
jurídica a atos privados e públicos.
Este artigo parte dessa premissa: a IA
veio para ficar. Cabe ao notariado não resistir à inovação, mas preservar sua
essência enquanto assume o protagonismo técnico na era digital. O futuro da
atividade será definido no ponto de encontro entre inteligência artificial e
responsabilidade jurídica - ou será apenas uma sombra de sua função
original.
O poder da IA: Minutas em segundos,
contratos sob medida
A inteligência artificial generativa já
consegue produzir, com rapidez e impressionante coesão textual, documentos que
antes exigiam conhecimento jurídico estruturado: testamentos, escrituras de
doação com cláusulas restritivas, contratos de compra e venda complexos,
pareceres técnicos e até textos fundamentados com remissões legais e
jurisprudenciais.
Esse salto tecnológico representa um divisor
de águas para a atividade notarial. A elaboração de atos jurídicos, que
pressupunha análise minuciosa, diálogo com as partes e aplicação do direito ao
caso concreto, passou a ser aparentemente "resolvida" por linhas de
código.
No entanto, o que a IA entrega em
agilidade, não entrega em responsabilidade. A confiança social no notário não
decorre da estética textual de um documento, mas da garantia de legalidade,
validade e segurança jurídica que ele confere ao ato.
A crescente adoção de minutas geradas por
IA escancara um paradoxo jurídico: quem responde por eventuais nulidades,
omissões ou cláusulas inválidas inseridas por um sistema automatizado? Se o
tabelião se limita a formalizar o instrumento sem a devida intervenção crítica,
há omissão funcional? Há responsabilidade civil?
A resposta é clara: sim. O delegatário
permanece vinculado ao princípio do controle de legalidade (art. 4º do
provimento CNJ 100/20), à responsabilidade objetiva decorrente da delegação
estatal e à função de orientação jurídica prevista nos Códigos de Normas
estaduais.
Ainda que o conteúdo venha
"pronto", o dever jurídico permanece: examinar o ato, verificar a
capacidade das partes, a licitude do objeto, a clareza das cláusulas e os
efeitos pretendidos. A fé pública não é um carimbo protocolar - é um instituto
de garantia que impõe vigilância ativa e responsabilidade jurídica indelegável.
Nesse cenário, o notário não pode assumir
papel passivo diante da automatização. Pelo contrário: é justamente agora que
sua atuação técnica se torna ainda mais relevante. O futuro da função não está
em resistir à tecnologia, mas em reafirmar sua autoridade jurídica sobre os
atos - inclusive os redigidos por máquinas.
O limite do algoritmo: O que a IA não
entrega (e talvez nunca entregue)
Por mais avançada que seja, nenhuma IA
detém fé pública, responsabilidade civil ou discernimento jurídico humano. E é
justamente aí que mora o ponto de ruptura: a IA pode gerar texto, mas não
assume dever jurídico nem responde por consequências.
O notário, ao contrário, é um agente
investido de autoridade pública. Seu papel não se limita à produção documental,
mas envolve garantir a higidez do ato jurídico, preservar a autonomia da
vontade das partes e assegurar que o instrumento lavrado esteja em conformidade
com o ordenamento. Isso exige mais que técnica: exige inteligência jurídica,
responsabilidade institucional e sensibilidade humana.
A tecnologia não é treinada para ouvir o
silêncio da parte mais frágil nem para detectar o desconforto de quem assina
pressionado - e isso, nas serventias extrajudiciais, faz toda a diferença entre
um ato nulo e um ato válido.
Além disso, a inteligência artificial não
possui responsabilidade patrimonial. Quando um erro ocorre em um contrato
redigido por IA, quem arca com os prejuízos? Certamente não o sistema. Já o
tabelião responde objetiva e pessoalmente pelos danos decorrentes de sua
atuação - conforme reiterada jurisprudência e previsão normativa nas leis de
regência da atividade notarial.
Outro ponto: a IA não possui capacidade
decisória no plano jurídico. Ela simula argumentação, mas não interpreta
conforme os princípios constitucionais, nem pondera valores conflitantes. Isso
a torna, no máximo, uma ferramenta auxiliar - nunca um substituto do
profissional responsável.
O notariado é, por essência, uma função de
filtro jurídico. Ele está na trincheira da desjudicialização justamente porque
oferece um equilíbrio entre celeridade, tecnicidade e responsabilidade. A fé
pública não é uma tecnologia: é uma garantia estatal lastreada na atuação
humana qualificada.
Portanto, a ideia de que a IA poderia
"assumir" funções notariais ignora esses limites estruturais. Pode-se
automatizar o texto, o formulário, a estética do documento. Mas não se
automatiza o juízo de legalidade, a prudência jurídica nem o compromisso
institucional com a segurança jurídica.
Integração inteligente: IA como aliada da
função notarial
Se a inteligência artificial não substitui
a função notarial, a pergunta inevitável passa a ser outra: como incorporá-la
de forma estratégica, sem comprometer os pilares da segurança jurídica e da fé
pública?
A resposta está na integração
inteligente - um modelo em que a IA atua como ferramenta de apoio à
atividade do delegatário, jamais como protagonista do ato jurídico. Nesse
arranjo, o notário permanece como agente central de legalidade e responsabilidade,
mas utiliza a tecnologia para potencializar sua atuação técnica, aumentar a
eficiência e aprimorar a experiência do usuário.
Exemplos já são visíveis em algumas
serventias mais tecnicamente estruturadas. A IA pode ser utilizada, por
exemplo:
Na triagem prévia de demandas, auxiliando
o atendimento inicial com respostas padronizadas de orientação geral;
Na sugestão automatizada de cláusulas
contratuais, extraídas de um banco parametrizado de modelos validados
previamente pela equipe jurídica;
Na análise sintática de documentos e na
detecção preliminar de incongruências ou omissões formais;
Na organização de dados recorrentes para
preenchimento de campos obrigatórios, acelerando a lavratura de atos
repetitivos (como procurações, autorizações, declarações simples etc.).
Esses mecanismos, contudo, não substituem
o juízo técnico do tabelião, nem a sua atuação como garantidor da legalidade e
da autonomia das partes. A curadoria jurídica permanece intransferível.
Mais do que automatizar, a proposta é usar
a IA como um braço auxiliar para qualificar a entrega final ao usuário. Um
cartório que se vale da IA para agilizar etapas burocráticas, liberar tempo do
corpo técnico e investir mais na escuta ativa, no aconselhamento jurídico e na
personalização dos atos, estará ampliando - e não reduzindo - o valor da sua
função institucional.
Esse modelo de convivência exige cautela,
mas também visão estratégica. É hora de debater protocolos éticos, padrões de
confiabilidade, filtros de segurança jurídica e limites para o uso de sistemas
automatizados no âmbito notarial. A regulamentação desse processo não pode ser
empurrada apenas para o futuro: deve ser construída desde já, com a
participação ativa dos notários e registradores, sob pena de o setor perder o
protagonismo sobre seu próprio destino.
A fé pública digital - se é que podemos
chamá-la assim - não será uma extensão da IA, mas da inteligência jurídica
que conduz sua aplicação. A tecnologia pode ser treinada para escrever. Mas
ainda depende do humano para compreender, ponderar, validar e garantir.
Fé pública, controle de legalidade e a
estrutura jurídica da função notarial
A função notarial não é uma prática de
conveniência, tampouco uma formalidade protocolar. Ela é expressão de um modelo
jurídico de segurança negocial preventiva, consagrado no ordenamento brasileiro
como atividade delegada do poder público (art. 236 da Constituição Federal),
regida por legislação específica e dotada de fé pública como instrumento de
eficácia jurídica e proteção da confiança legítima.
O notariado de tipo latino, adotado no
Brasil, funda-se na ideia de que os negócios jurídicos, especialmente os atos
translativos ou constitutivos de direitos reais, exigem um controle jurídico
prévio e técnico - exercido por um agente imparcial, com responsabilidade civil
objetiva e fé pública atribuída pelo Estado.
Essa concepção vai muito além da produção
documental: trata-se da tutela do negócio jurídico em si, conforme já
reconheceu o STF ao afirmar que a função notarial atua como filtro de
legalidade e de prevenção de litígios, fortalecendo a desjudicialização
responsável e protegendo o jurisdicionado da insegurança contratual.
A fé pública, nesse contexto, não é uma
qualidade pessoal do tabelião, mas um instituto jurídico que confere presunção
relativa de veracidade e autenticidade aos atos por ele praticados. A lavratura
de um instrumento público implica que houve intervenção estatal qualificada,
juízo de legalidade, identificação plena das partes, verificação da vontade, do
objeto, da forma e da finalidade lícita do ato.
É por isso que a responsabilidade do
tabelião é elevada: responde civilmente pelos prejuízos causados por erro,
omissão ou negligência, independentemente de dolo, e pode ter a delegação
cassada em caso de infrações graves. Não há ferramenta tecnológica que suporte
esse grau de responsabilização.
Sob a ótica dos princípios gerais do
Direito, a atuação notarial está intrinsecamente ligada à segurança jurídica, à
confiança legítima, à boa-fé objetiva e à função social dos contratos. E,
portanto, não pode ser confundida com serviços automatizados, mesmo que
eficientes.
A IA, ainda que sofisticada, não é capaz
de assumir essa posição jurídica, nem de substituir o papel institucional do
notariado.
Neste sentido, a integração tecnológica só
é válida se vier subordinada à preservação da função jurídica essencial do
notário, com respeito aos princípios que estruturam o sistema. Sem isso,
corre-se o risco de substituir segurança jurídica por risco automatizado - e
isso o Direito não tolera.
Conclusão - modernizar sem diluir: A
resposta do notariado é estratégica
A IA generativa chegou - e não há retorno.
Ignorar sua presença seria ingenuidade. Mas admitir que ela possa substituir a
função notarial seria um erro conceitual, jurídico e institucional de
proporções graves.
A função notarial não é uma ferramenta de
redação de documentos, mas uma instituição jurídica estruturante da segurança
privada no Estado de Direito. É sustentada por princípios, normas
constitucionais, responsabilidade civil objetiva, controle de legalidade e pela
confiança pública delegada pelo Estado. Nenhum algoritmo, por mais treinado que
seja, possui essas credenciais.
Isso não significa resistir à inovação.
Pelo contrário: significa liderá-la com consciência jurídica. O notariado deve
assumir seu papel no processo de transformação digital, utilizando a tecnologia
como instrumento de qualificação da atividade - e não como atalho para a
precarização da fé pública.
A IA pode ser uma aliada valiosa na
racionalização de rotinas, na padronização de cláusulas, na filtragem inicial
de demandas. Mas o que permanece insubstituível - e deve ser preservado com
zelo - é a presença do tabelião como agente de legalidade, filtro jurídico e
garantidor da segurança negocial.
Neste novo cenário, o verdadeiro desafio
não está na técnica, mas na identidade: como modernizar sem diluir? Como inovar
sem abdicar da essência? A resposta exige protagonismo institucional, clareza
conceitual e compromisso com a função pública delegada.
A IA escreve com precisão. Mas não assume
responsabilidade. Não responde por vícios. Não garante o Direito.
O notariado, sim.
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BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de
1994. Dispõe sobre serviços notariais e de registro.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento
nº 100, de 26 de maio de 2020. Dispõe sobre a prática de atos notariais
eletrônicos.
WORLD ECONOMIC FORUM. AI Governance: A
Holistic Approach to Implement Responsible Artificial Intelligence. Geneva:
WEF, 2023.
EUROPEAN NOTARIAL NETWORK (ENN).
Artificial Intelligence and the Notarial Function. Brussels, 2022.
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Obras e artigos
sobre responsabilidade dos delegatários extrajudiciais.
Fonte: Migalhas