Não é a primeira vez
que escrevo em defesa da possibilidade de utilização da arbitragem para a resolução
de litígios de Direito de Família [1]. O panorama
inicial, lamentavelmente contrário à desestatização desse tipo de demanda, tem
sofrido paulatina evolução a partir de uma crescente conscientização social
sobre a necessidade de assegurar maior autonomia privada nas relações de
família. O Enunciado 96, aprovado na II Jornada de Prevenção e Solução
Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal,
reconhece, expressamente, ser "válida a inserção da cláusula
compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável"
Ainda assim,
subsistem resistências por parte da comunidade arbitral, com base em dois argumentos
centrais: o primeiro se apoia na ideia de indisponibilidade de
todo e qualquer direito subjetivo de família, mesmo de natureza patrimonial, o
que retiraria dos litígios emergentes dessas relações jurídicas o requisito
objetivo da arbitrabilidade. Afirma-se que os conflitos familiares estariam
sempre imantados de fortes sentimentos e isso faria com que os direitos
discutidos naqueles processos se situassem em uma ordem de
indisponibilidade [2]. Ora, nada mais equivocado, pois a
legislação pátria, quer o Código Civil, quer a Lei de Arbitragem (LArb), não
faz esse tipo de objeção. Ademais, nem todos os direitos subjetivos nas
relações de família, patrimoniais ou extrapatrimoniais, são indisponíveis.
O segundo argumento
é de ordem prática. Fala-se na dificuldade de aceitação dos árbitros (atuais)
para solucionarem litígios familiares, ora por receio de enfrentarem eventual
pretensão de nulidade da sentença arbitral, com esteio no artigo 32, inciso I,
da Lei 9.307/96; ora pela falta de afinidade temática com as demandas próprias
dessa seara especializada do Direito Privado. Grande parte dos árbitros
listados nas principais câmaras brasileiras são reconhecidos doutrinadores em
Direito Administrativo, Empresarial, Contratos e Processo Civil, sendo notória
a carência de especialistas em áreas até hoje pouco submetidas à arbitragem,
como é o caso do Direito de Família. De outra sorte, até naqueles campos
tradicionais da arbitragem institucional, é possível constatar uma progressiva
contestação judicial das sentenças arbitrais, a denotar uma possível
insatisfação social com o modelo atual e, ao mesmo tempo, justificar uma
reflexão imparcial sobre como aperfeiçoar o instituto, tanto no sentido de lhe
atribuir mais segurança jurídica, como para democratizar a arbitragem,
ampliando o espectro de demandas abrangidas e o número de profissionais
qualificados a exercer o munus de árbitro.
Sob essa
perspectiva, merece elogios o PL 3.293/2021 [3], de autoria da deputada e advogada
Margarete Coelho [4], com propostas de adequação e
modernização da Lei de Arbitragem para disciplinar a atividade do árbitro,
aprimorar o dever de revelação, estabelecer a divulgação das informações após o
encerramento do procedimento arbitral e a publicidade das ações anulatórias.
O projeto tem sido
alvo de injusta condenação, sendo imputado até de inconstitucional, ao
argumento de que estaria impondo requisitos incompatíveis com a livre
iniciativa e com a autonomia privada, quando limita a laboração do árbitro,
proibindo, por exemplo, que um mesmo árbitro atue em mais de dez arbitragens
concomitantes ou que haja identidade dos membros de dois tribunais em
funcionamento. A proposta também veda que os integrantes da secretaria ou
diretoria da câmara arbitral funcionem em procedimentos administrados pelo
respectivo órgão.
Reclama-se do
prejuízo aos árbitros profissionais, que se dedicam exclusivamente à tal
atividade ou àqueles que são indicados com mais frequência pelos maiores
escritórios arbitralistas; e que a vedação dirigida aos integrantes da
secretaria e da direção das câmaras privaria grandes talentos do exercício
profissional como árbitros.
Outro ponto de
crítica diz respeito ao dever de revelação, pois a proposta passa a exigir do
árbitro o "dever de revelar, antes da aceitação da função e
durante todo o processo, a quantidade de arbitragens em que atua, seja como
árbitro único, coárbitro ou presidente do tribunal, e qualquer fato que denote
dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência". Objeta-se
a expressão "dúvida mínima", no lugar de "dúvida
justificada" prevista no texto em vigor, bem como a proposta de
acréscimo dos artigos 5-A e 5-B, com previsão de publicação, no início do
procedimento, da "composição do tribunal e o valor envolvido na
controvérsia" e, após o encerramento da jurisdição arbitral, a
íntegra da sentença, sendo facultado às partes, "justificadamente,
requerer que eventuais excertos ou informações da decisão permaneçam
confidenciais".
Com o máximo
respeito aos entendimentos contrários, penso que as críticas não se sustentam.
A limitação da quantidade de arbitragens em que um árbitro pode atuar
simultaneamente, ao lado da obrigação de revelar em quantos casos trabalha
nessa condição, antes de limitar o exercício profissional, ou restringir o
princípio da livre iniciativa, possibilitará o ingresso de novos profissionais
nesse mercado, democratizando o acesso à atividade de árbitro e evitando
indicações repetidas que, além de restringir a concorrência e a diversidade,
impactam, por óbvio, o tempo de tramitação das arbitragens [5]. Argumenta-se que, na maioria das
vezes, o árbitro é escolhido pelas partes e se estas nomeiam árbitros muito
ocupados, o problema é delas.
Isso não é bem
verdade. A uma porque as partes nem sempre sabem se o profissional eleito
efetivamente dispõe de tempo para proceder com diligência e rapidez, eis que
não existe, no texto legal hodierno, obrigação de revelação, pelo árbitro, do
número de arbitragens que conduz. A duas porque a escolha não é tão livre
assim. No Brasil praticamente só existe arbitragem institucional, sendo
raríssimos os casos de arbitragem ad hoc, enquanto que nas câmaras
predominam os árbitros "listados", sendo menos frequentes as
indicações de profissionais fora das listas "fechadas". Por mais que
essas listas não sejam vinculativas, as partes terminam fazendo as suas
indicações com base nelas, ao pressuposto de que apenas aqueles profissionais
estão habilitados a decidir o seu caso.
Uma maior
quantidade de árbitros, aptos e qualificados a atuar no procedimento arbitral,
ao lado da difusão de cursos de capacitação de arbitralistas, como consequência
imediata da limitação, implicará, como ressalta a justificação do
projeto, "decisões de maior profundidade e qualidade,
privilegiando também os princípios da eficiência e duração razoável do processo
arbitral".
A proibição a que
os integrantes da secretaria ou diretoria da câmara funcionem em procedimentos
administrados pelo órgão que integram contribuirá para minimizar conflitos de
interesses, elidindo que os mesmos profissionais que decidem as questões
administrativas antecedentes à formação do painel arbitral, também operem como árbitros
perante arbitragens administradas por aquela câmara. O alargamento do dever de
revelação, por outro lado, corrigirá um déficit atual da LArb, que tem sido um
dos fatores de incremento das ações anulatórias de sentenças arbitrais [6].
Por fim, a
publicação das sentenças, que poderão se manter em sigilo em relação aos nomes
das partes e aos dados sensíveis, propiciará a criação do tão almejado banco de
jurisprudência arbitral, o que aumentará a segurança jurídica de todos os que
se valem da arbitragem e favorecerá a uniformidade e coerência das decisões, um
dos pilares do novo sistema processual, advindo com o CPC de 2015. Não se pode
esquecer que nas disputas envolvendo contratos vultosos, especialmente nas
áreas de infraestrutura, energia, fusões e aquisições, predomina a arbitragem
institucional, com um direito em permanente construção nas câmaras, por um
número restrito de árbitros, sem o conhecimento da comunidade jurídica e de
quem não é parte no procedimento. A divulgação das decisões, com a supressão de
dados pessoais e comerciais, enfatizando a matéria de Direito, vai socializar o
estudo da arbitragem, facilitando o acesso a uma gama de interessados e
contribuindo, assim, para afastar o mito de que essa especialidade é seara
restrita de um grupo fechado de privilegiados, que já chegou a ser chamado
de "country club".
O projeto, portanto,
tem sido injustamente criticado, já havendo sido alcunhado de "PL
Antiarbitragem". As críticas refletem, talvez, o inconformismo de alguns,
forçados a abrir espaço para novos profissionais especializados que surgirão,
naturalmente, com a democratização e ampliação da atividade arbitral e que
decorrerá, por sua vez, da aprovação do PL 3.293/2021.
Especialmente no
que tange aos conflitos fundados no Direito de Família, a proposta corajosa de
Margarete Coelho contribuirá para expandir a submissão desses litígios ao
procedimento arbitral. Com mais profissionais, renovados e atualizados,
certamente, testemunharemos uma jurisdição privada muito mais preparada para
absorver e resolver esses litígios.
O Estado Juiz não é
melhor ou mais eficiente que o juiz privado. Aliás, a experiência tem nos
mostrado justamente o contrário, com uma Justiça estatal extremamente
despreparada para lidar com conflitos intersubjetivos que extrapolam os limites
de um discurso normativo ou decisório meramente subsuntivo. Logo, os conflitos
do Direito de Família possuem maiores chances de serem solucionados da forma
mais adequada, e condizente com os interesses das partes envolvidas, por meio
da arbitragem, desde que o sistema arbitral esteja preparado para isso, com o
incremento de profissionais e câmaras que se especializem nesse tipo de
conflito.
Após a sanção do PL 3.293/2021, temos a esperança de que não mais subsistirão as restrições ao uso da arbitragem como opção à solução de todo e qualquer conflito patrimonial disponível emergente das relações fundadas no Direito de Família.
Mário
Luiz Delgado é doutor
em Direito Civil pela USP, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP,
especialista em Direito Processual Civil pela UFPE, diretor do Instituto dos
Advogados de São Paulo (Iasp), presidente da Comissão Nacional de Assuntos
Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), professor
dos cursos de pós-graduação das Escolas da Advocacia e da Magistratura,
advogado e parecerista, membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).
Foi assessor, na Câmara dos Deputados, da relatoria-geral do projeto de lei que
deu origem ao novo Código Civil Brasileiro. Autor e co-autor de livros e
artigos jurídicos.
Fonte:
Conjur