Introdução
Causou impacto na
imprensa internacional a notícia de que a cantora Jennifer Lopez, 52, e o ator
Ben Affleck, 49, anunciaram seu casamento no início de abril. Noivos pela
segunda vez, eles voltaram a ser assunto dos tablóides não apenas pela retomada
do relacionamento após 20 anos, mas sobretudo pela inserção de uma curiosa
cláusula no acordo pré-nupcial. Segundo o jornal espanhol La Vanguardia, uma
das obrigações conjugais firmadas entre os dois é a frequência de, no mínimo,
quatro relações sexuais por semana.1
Em outro caso mais
antigo (meados dos anos 2000) e bastante conhecido, a atriz Catherine
Zeta-Jones condicionou a oficialização da união com o ator Michael Douglas à
submissão do noivo ao tratamento de um distúrbio ninfomaníaco. O descumprimento
dessa promessa implicaria na aplicação de multa de US$ 5 milhões. Ficou
acertado, ainda, que Zeta-Jones ganharia US$ 1,6 milhão a cada ano completo de
casamento, devendo receber, em caso de divórcio, um total de
aproximadamente US$ 20 milhões.2
A união conjugal
entre a atriz Nicole Kidman e o cantor e compositor Keith Urban também se
notabilizou pelas condições do pacto pré-nupcial. O cantor country sofreu com
os vícios do álcool e da cocaína, tendo sido internado diversas vezes em
clínicas de reabilitação. Por conta disso, Kidman exigiu que constasse do
acordo pré-nupcial cláusula proibindo o marido de usar qualquer tipo de droga
ilícita, sob pena de, em caso de recaída nos referidos vícios, ocorrer a
imediata ruptura da relação conjugal, sem qualquer direito a benefício
financeiro sobre o patrimônio da esposa. No referido contrato, Kidman ainda
prometeu ao marido, um "prêmio" de US$ 600 mil por ano, caso ele
conseguisse ficar sóbrio e não levar outras mulheres para a cama.3
A despeito de toda a
espetacularização que esses casos renderam no mundo do showbiz, eles não deixam
de simbolizar a cultura dos acordos pré-nupciais no sistema da common law,
retratando uma peculiar forma de exercício da autonomia privada à qual o mundo
da civil law não está habituado, e que extrapola, em muito, supostas balizas
previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
Cultura
norte-americana dos acordos pré-nupciais
Culturalmente
enraizado no direito norte-americano, o acordo pré-nupcial (pre-marital
agreement) consubstancia-se em um documento redigido pelas partes envolvidas,
sendo possível a sua elaboração mesmo depois do casamento (post-marital
agreement).
Os interessados podem
redigir primeiramente um esboço do acordo pré-nupcial antes de submetê-lo a um
advogado especialista, ou desenhar um modelo específico de acordo juntamente
com o seu(s) representante(s), com vistas à segurança, validade e eficácia da
avença. Pode ser escolhido apenas um representante para as partes envolvidas,
ou podem elas ser representadas por advogados diferentes, garantindo que seus
interesses sejam totalmente protegidos e não comprometidos por possíveis
conflitos de interesse.4
Na maior parte dos
Estados norte-americanos são admitidas cláusulas pré-nupciais versando sobre os
mais variados assuntos, não se limitando a aspectos patrimoniais resultantes da
união conjugal pretendida. Dessa forma, não são incomuns cláusulas regulando,
desde a rotina doméstica, até questões mais complexas a respeito dos deveres
conjugais.
Como explica Maria
Rita XAVIER, "os contratos antenupciais celebrados em numerosos Estados
dos Estados Unidos são pródigos em cláusulas que concretizam os deveres dos
cônjuges. Os autores descrevem cláusulas sobre a distribuição de tarefas no
lar, sobre o exercício de profissões, sobre a frequência de relações sexuais,
sobre práticas religiosas, sobre animais de estimação, sobre o local de
residência, etc."5
Assim, o acordo
pré-nupcial nos EUA pode regular desde o gerenciamento de contas bancárias
conjuntas com o futuro cônjuge, passando por orientações a respeito de como
lidar com declarações de impostos e contas domésticas, como fazer pagamentos
com cartão de crédito ou quanto dinheiro deverá ser economizado pelo casal.
A cultura dos acordos
pré-nupciais no direito norte-americano muito se explica pela clareza
financeira que esse tipo de arranjo pode proporcionar. Um acordo pré-nupcial
bem desenhado pode evitar ou reduzir conflitos derivados do fim do
relacionamento conjugal. Isso porque, na hipótese de inexistir um acordo
pré-nupcial, o patrimônio do casal será dividido de acordo com as leis de cada
Estado - o que pode desinteressar as partes envolvidas.
A lei do Estado em
que um casal se divorcia determina exatamente como o patrimônio será
distribuído, em caso de conflito, pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, os
Estados norte-americanos geralmente adotam dois sistemas: o sistema da
community property e o sistema da equitable distribution.
Nos Estados de
community property, (Arizona, California, Idaho, Louisiana, Nevada, New Mexico,
Texas, Washington, Wisconsin), qualquer bem adquirido durante o casamento é
geralmente considerado propriedade conjugal a ser dividida igualmente. Assim,
primeiramente o Tribunal decidirá acerca das categorias de bens: comuns e
particulares e, tudo que for classificado como bem comum, será dividido
igualmente entre os cônjuges.6
Já o sistema da
equitable distribution é o mais utilizado, sendo aplicado em 40 estados
norte-americanos. Nesse caso, os Tribunais distribuem todos os ganhos, bens
pessoais e dívidas entre os cônjuges, mediante divisão que seja considerada
justa (aos olhos do juiz), mas não necessariamente igual.
Em contraste com os
Estados de community property, onde os bens particulares são reservados
exclusivamente para o cônjuge que os possui, nos Estados de equitable
distribution é possível que o juiz determine que um dos cônjuges compartilhe
alguns de seus bens particulares com o intuito de tornar justa a divisão.7
Os acordos
pré-nupciais podem versar não apenas sobre os bens que cada cônjuge possui, mas
também sobre as suas dívidas. Isso significa que cada cônjuge pode vir a ser
protegido da responsabilidade pelas dívidas do outro cônjuge. Casais com filhos
de casamentos anteriores podem usar um acordo pré-nupcial para garantir que
possam deixar seus bens separados para eles quando falecerem.8
Um acordo
pré-nupcial, ainda, permite que sejam mantidos certos bens considerados
importantes na família, tornando-os insuscetíveis de qualquer negociação. Às
vezes, uma preciosa herança de família terá sido passada de geração em geração,
adquirindo um significado pessoal muito além de seu valor de mercado.
De todo modo, diante
da inexistência de um acordo pré-nupcial, os meios de resolução extrajudicial
de conflitos sempre é a alternativa mais utilizada quando da dissolução da
sociedade conjugal. Dentre os mecanismos de alternative dispute resolution,
destacam-se, no sistema norte-americano, a resolução de disputas conjugais pela
avaliação neutra de terceiro e pela intervenção de um mediador9, sem a
necessidade de se recorrer à assistência de um Tribunal.
Limites
Mesmo no sistema de
justiça norte-americano, há limites para os acordos pré-nupciais. Ainda que a
autonomia privada seja fortemente reconhecida, os ajustes concernentes ao
regime patrimonial, por exemplo, não podem prejudicar legítimos interesses de
membros da família. Dessa forma, os acordos pré-nupciais não podem impor
restrições à pensão alimentícia, à guarda dos filhos ou a quaisquer outros
direitos relativos aos filhos de uma relação conjugal que chega ao fim.
Antes de um Tribunal
dar cumprimento a um acordo pré-nupcial, ele procurará determinar se o pacto é
escrito, claro e justo. O Tribunal considerará muitos fatores, incluindo a
necessidade de as partes divulgaram adequadamente suas finanças, serem
representadas por um advogado e avençarem voluntariamente o acordo, sem
qualquer coação. O Tribunal também analisará os termos do acordo para ver se as
obrigações nele inseridas são justas e não unilaterais ou inconcebíveis.10
Em regra, o acordo
pré-nupcial deve se ater essencialmente a arranjos financeiros, mas sem
desconsiderar efeitos reflexos que interferirão diretamente nas relações
conjugais. Assim, o pacto antenupcial não deve se estender às relações com
outros membros da família, suas decisões sobre se e quando ter filhos, ou quem
deve fazer certas tarefas.
Nesse sentido, muitas
das cláusulas pré-nupciais que estabelecem obrigações conjugais
extrapatrimoniais têm sido consideradas inválidas pelos Tribunais, como, por
exemplo, "as relativas à frequência das relações sexuais ou as
respeitantes aos filhos de anterior casamento, por hipótese, proibindo-os de
viverem com os actuais nubentes". Por outro lado, os Tribunais americanos
têm admitido que "as partes se comprometam a educar os futuros filhos
segundo uma determinada religião."11
O pacto antenupcial
no Brasil
No Brasil, ao menos
até alguns anos atrás, não existia uma cultura de pactos antenupciais. Em que
pese a necessidade de elaboração do acordo quando da escolha do regime diverso
do atual modelo regra (isto é, o da comunhão parcial), os nubentes se limitavam
a seguir fielmente as regras estabelecidas pelo Código Civil.
No entanto,
gradativamente se percebe uma mudança nesse cenário, na medida em que são
assimiladas as vantagens da elaboração de um pacto pré-nupcial em consonância
com o perfil e as necessidades dos envolvidos.12
Para que possa
parametrizar o sentido e o alcance do pacto antenupcial é preciso compreender,
preliminarmente, a sua natureza jurídica. A depender da concepção do que
realmente venha a constituir juridicamente referida avença, é possível
sustentar uma maior ou menor amplitude das cláusulas nela inseridas -
eventualmente, até, versando sobre obrigações extrapatrimoniais.
Por um lado, alguns
autores defendem que o pacto antenupcial seria um verdadeiro contrato.13 Por
outro lado, há na doutrina quem sustente se tratar de um negócio jurídico de
direito de família.14
Nesse contexto, a
partir da interpretação da natureza jurídica, especula-se a respeito dos
limites do pacto antenupcial no direito brasileiro, suscitando-se na doutrina
as seguintes possibilidades: i) as cláusulas previstas no pacto devem se ater
estritamente ao espectro dos regimes de bens escolhido;15ii) seria possível a
previsão de cláusulas de conteúdo patrimonial, consagrando outros temas que não
estritamente regras atinentes ao regime de bens;16iii) seria possível a adoção
de cláusulas de conteúdo extrapatrimonial no pacto antenupcial.17
Na verdade, o pano de
fundo dessa discussão possui estreita conexão com os limites da interferência
do Poder Público nas relações interprivadas: até que ponto a autonomia da
vontade dos nubentes deve prevalecer em matéria de pactos antenupciais?
A ingerência do
Estado nas relações interpessoais, não obstante fundamentada na suposta
proteção e na manutenção da ordem pública e dos bons costumes, pode e deve ser
continuamente repensada, a partir da necessidade de acomodar os diversos
fatores de pressão envolvidos e de afirmar a adequada proteção dos direitos da
pessoa.
Como afirmam Bodin de
Moraes e Multedo, "a privatização das relações conjugais e
convivenciais permite que as pessoas estabeleçam as próprias regras de
convivência, evitando-se, assim, intervencionismo injustificado e
desnecessário, salvaguardando-se a intervenção somente para as situações
patológicas. (...) Nesse aspecto, a atuação estatal deve ser balizada pelos
limites de uma "reserva de intimidade", de forma a promover os
princípios constitucionais, somente intervindo efetivamente mediante
solicitação judicial por parte dos próprios cônjuges, se impossível a solução
de conflitos internos da relação conjugal."18
Não há como negar a
fratura existente entre as necessidades impostas pela vida social do século XXI
e o modelo estrutural das relações jurídicas tradicionais. O Direito Civil
contemporâneo é marcado pela relativização e fragmentação conceitual, sobretudo
em razão da gradativa e dinâmica alteração da estrutura dos conceitos
jurídicos, oriunda do modo de ser da sociedade atual, a reclamar pela
funcionalização conceitual em busca da concretização da igualdade substancial.
Diante disso, a
revisão de certos institutos jurídicos - tal como o pacto antenupcial -
torna-se não apenas viável, mas necessária. Somente mediante uma tal releitura
parece ser possível sustentar a previsão de cláusulas de conteúdo
extrapatrimonial nos pactos antenupciais, desde que não ofendam os princípios
basilares do Direito das Famílias.
De toda forma, parece
certo que qualquer obrigação estabelecida pelo pacto antenupcial (de conteúdo
patrimonial ou extrapatrimonial) sempre será submetida a um controle da licitude,
tendo como grande parâmetro a salvaguarda do subjetivo valor inerente à
"ordem pública" e a preservação das entidades familiares.
Daí que,
exemplificativamente, por contrariarem o ordenamento jurídico, algumas
disposições impositivas de obrigações não-patrimoniais seriam invariavelmente
consideradas nulas, tal como aquelas que definem previamente que a guarda de
futura prole seja exercida por um dos cônjuges, em detrimento do outro, em caso
de divórcio.
Contudo, a análise da
validade de toda e qualquer cláusula deve ser realizada à luz do caso concreto,
sendo certo que a limitação genérica de conteúdo do pacto antenupcial à estrita
definição do regime de bens não observa os princípios da autonomia privada, da
intimidade e do livre planejamento familiar, indo de encontro ao Direito das
Famílias contemporâneo.