O CPC/2015 trouxe
muitas promessas, dentre elas, a da cooperação como norma fundamental,
estampada no art. 6º: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre
si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e
efetiva".
Mais adiante, o
Código estabeleceu um regramento próprio para a cooperação judiciária nacional
e internacional. No caso da cooperação nacional, percebe-se que as regras foram
destinadas precipuamente aos órgãos do Poder Judiciário (art. 67), podendo os juízos
formular entre si pedidos de cooperação para a prática de qualquer ato
processual (art. 68). Entretanto, restou clara também a possibilidade de
cooperação entre órgãos jurisdicionais diversos, com a expressa menção à carta
arbitral (art. 69, §1º)1 e a referência contida no art. 69, §3º de que "o
pedido de cooperação judiciária pode ser realizado entre órgãos jurisdicionais
de diferentes ramos do Poder Judiciário".
Para além da
cooperação entre juízos pertencentes ao Poder Judiciário, Fredie Didier Jr. explicita
que a cooperação pode representar também a interação entre órgãos judiciários e
tribunais arbitrais ou órgãos administrativos, inclusive por intermédio do
compartilhamento ou delegação de competência, centralização de processos,
produção de prova comum, prática de atos processuais, gestão de processos,
entre outras técnicas2.
Seguindo a mesma
linha de raciocínio, Flávia Pereira Hill chama a atenção para o indispensável
incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial, mais especificamente,
os cartórios extrajudiciais, com o desenvolvimento do que denominou
"triplo C": cooperação, complementaridade e coordenação. Para a
autora, a administração da justiça é compartilhada por vários agentes,
incluindo os delegatários dos cartórios extrajudiciais, de modo que diversas
medidas cooperativas devem ser implementadas entre estes e os órgãos judiciais,
dentre as quais se destacam: a) a criação e regulamentação da carta
extrajudicial como instrumento de cooperação entre as esferas judicial e
extrajudicial, por analogia à carta arbitral; b) a possibilidade de a prova
produzida perante cartório extrajudicial ser emprestada para o processo
judicial, desde que garantido o contraditório3.
Reconhecendo a
possibilidade da utilização de instrumentos de cooperação entre cartórios
extrajudiciais e órgãos judiciais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou
a Recomendação nº 28/2018, para que os tribunais de justiça dos Estados e do
Distrito Federal celebrassem convênios com notários e registradores do Brasil
para a instalação, nas serventias, de centros judiciários de solução de
conflitos e cidadania (CEJUSCs) nos locais em que ainda não tivessem sido
implantados4.
Em 29.10.2020, o CNJ
editou a Resolução nº 350, que dispõe sobre a cooperação judiciária nacional, a
qual estabelece, em seu art. 1º, que a cooperação abrange as seguintes
dimensões: a) ativa, passiva e simultânea entre órgãos do Poder Judiciário; e
b) interinstitucional entre órgãos do Poder Judiciário e outras
instituições e entidades, integrantes ou não do sistema de justiça, que possam
contribuir, direta ou indiretamente, para a administração da justiça.
O art. 16 da
Resolução enumera os órgãos e instituições que podem atuar na cooperação
interinstitucional5. Esperava-se que os cartórios extrajudiciais estivessem
nessa lista, notadamente em razão da Recomendação nº 28/2018 e de outros tantos
instrumentos normativos do próprio CNJ que evidenciam a atuação colaborativa
das serventias com o Poder Judiciário, porém tal inclusão não aconteceu.
De toda sorte,
extrai-se da redação do próprio caput do art. 16 que o rol é meramente
exemplificativo. Nada impede que outros órgãos, entidades e instituições,
integrantes ou não do sistema de justiça, sejam considerados cooperantes
interinstitucionais, desde que possam contribuir para a execução da estratégia
nacional do Poder Judiciário, promover o aprimoramento da administração da
justiça, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional.
Assim é que, apesar
da redação do art. 16 da Resolução 350 do CNJ, entende-se que a cooperação
interinstitucional, nos termos dos arts. 1º, inciso II, 16 e seguintes da
Resolução nº 350/2020 do CNJ, deve abranger as serventias extrajudiciais e são
muitas as razões para tanto.
A atividade notarial
e registral, embora exercida em caráter privado por delegação do Estado (art.
236, caput, da CF), é pública, conforme já decidiu o STF6. O ingresso na
atividade ocorre através de aprovação em concurso público de provas e títulos
(art. 236, §3º, da CF), realizado pelo Poder Judiciário (art. 15 da lei
8.935/94), a quem cabe também a outorga da delegação, através de ato da
Presidência ou da Corregedoria-Geral de Justiça do respectivo Tribunal de
Justiça estadual. Sendo a atividade delegada pelo Poder Público, os notários e
registradores estão submetidos à normatização e à fiscalização por parte do
ente público delegante e essas atividades são desempenhadas pelas corregedorias
estaduais e pelo CNJ (art. 103-B, §4º, I e III, da CFRB). Além disso, estão
sujeitos a processo administrativo disciplinar e à perda da delegação em caso
de descumprimento de seus deveres, previstos em Lei e nas normas
administrativas, inclusive o dever de observar as prescrições legais e
normativas (arts. 30, XIV, 31, I e 32 a 35 da lei 8.935/94).
A remuneração da
atividade se perfaz mediante o pagamento de emolumentos, que têm natureza
jurídica de taxa, conforme já definiu o STF7, considerando a natureza pública e
o caráter social dos serviços prestados pelas serventias extrajudiciais.
Os delegatários das
serventias são juristas8, dotados de fé pública, que têm por função garantir
publicidade, autenticidade, eficácia e segurança jurídica aos atos e negócios
jurídicos, conferindo-lhes presunção de veracidade e valor probatório, além de
exercerem um relevante papel de assessoria e aconselhamento aos usuários dos
serviços notariais e registrais.
É tradicional, aliás,
a concepção segundo a qual notários e registradores são agentes de pacificação
social que atuam na prevenção de litígios9. Por isso, em diversos países que
adotam o chamado notariado latino10, verifica-se uma tendência de
desjudicialização11 de procedimentos de jurisdição voluntária para os cartórios
extrajudiciais12, notadamente em razão da inexistência de conflito entre os
envolvidos que geralmente é referida como uma das características dessa espécie
de jurisdição.
Esse movimento também
está presente no Brasil e é certo que os diversos instrumentos normativos que
promoveram a desjudicialização até aqui demonstram uma preferência pelas
serventias extrajudiciais. Vários procedimentos podem ser levados a efeito nos
cartórios sem a obrigatoriedade de intervenção judicial, tais como os
casamentos, inclusive homoafetivos, as retificações administrativas, as
escrituras públicas de divórcio e partilha, a usucapião extrajudicial, a
divisão e a demarcação por escritura pública, o reconhecimento da filiação
biológica e da socioafetiva diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais,
entre outros.
A constatação de que
os notários e registradores são agentes de pacificação social e que, portanto,
podem atuar não apenas na prevenção como também na solução consensual dos
conflitos deu ensejo à expressa previsão, na lei 13.140, de 26.06.2015, em seu
art. 45, de que a mediação pode ser realizada nas serventias extrajudiciais e
que, portanto, notários e registradores e seus prepostos podem ser mediadores.
O CNJ, em seguida, regulamentou a matéria por intermédio do Provimento nº
67/2018.
Em razão de todas as
características acima referidas, entende-se que as serventias extrajudiciais
integram o sistema de justiça. Sobre o ponto, no Fórum Permanente de
Processualistas Civis realizado em março do ano em curso, restou aprovado o
enunciado de nº 707, segundo o qual a atuação das serventias extrajudiciais
integra o sistema brasileiro de justiça multiportas13. Cuida-se de um relevante
reconhecimento doutrinário de que os cartórios extrajudiciais constituem uma
das vias dispostas ao cidadão para a solução de seus conflitos.
Partindo-se da
premissa de que as serventias extrajudiciais integram o sistema de justiça,
considera-se que podem elas atuar em colaboração com outros órgãos, integrantes
ou não do Judiciário. Daí porque devem estar inseridas no contexto da
cooperação judiciária interinstitucional, nos termos da Resolução nº 350 do
CNJ.
Em razão disso, a
autora do presente texto apresentou, perante a II Jornada de Prevenção e
Solução Extrajudicial dos Litígios, realizada pelo Conselho da Justiça Federal,
proposta de enunciado, que foi aprovado nos seguintes termos: "A
cooperação nacional interinstitucional pode ser realizada entre órgãos
judiciais e serventias extrajudiciais, inclusive para a prática dos atos de
cooperação descritos no art. 6º da Resolução n. 350/2020 do CNJ, no que
couber"14.
Embora os atos de
cooperação interinstitucional estejam descritos no art. 1515, o rol não é
taxativo, visto que o caput menciona que poderão ser adotadas outras
providências além daquelas ali referidas.
Tendo em vista a
natureza da atividade notarial e registral e os seus contornos atuais, pensa-se
que a cooperação interinstitucional entre serventias extrajudiciais e órgãos
judiciais pode abranger diversos dos atos descritos no art. 6º da Resolução nº
350, dentre os quais se destacam: a) a prática de atos de comunicação
processual, notadamente nos procedimentos desjudicializados e naqueles em que
há atuação conjunta judicial e extrajudicial; b) a prestação e a troca de
informações relevantes para a solução dos processos extrajudiciais; c) a
obtenção e apresentação de provas, a coleta de depoimentos e meios para o
compartilhamento de seu teor; d) a efetivação de medidas e providências
referentes a práticas consensuais de resolução de conflitos; e e) o
compartilhamento de infraestrutura, tecnologia e informação, respeitada a
legislação de proteção de dados pessoais.
Feitas tais
considerações, revela-se fundamental elencar, ainda que exemplificativamente
(dados os limites do presente texto), algumas medidas de cooperação
interinstitucional que têm sido concretizadas entre serventias extrajudiciais e
órgãos judiciais.
Primeiramente,
deve-se fazer referência às centrais eletrônicas notariais e registrais, cujos
dados são compartilhados com o Poder Judiciário, a exemplo da Central de
Informações do Registro Civil (CRC) que, por intermédio da CRC-Jud16, permite
que magistrados e integrantes de órgãos públicos conveniados realizem buscas de
registros de nascimentos, casamentos e óbitos, e que solicitem certidões
eletrônicas diretamente nos módulos da Central. Também se pode mencionar o
sistema Penhora Online17, que interliga o Poder Judiciário ao Registro de
Imóveis, permitindo a pesquisa de bens pelo CPF/CNPJ, a solicitação de
certidões digitais e de penhora, arresto e sequestro de bens imóveis.
Vale também mencionar
a averiguação oficiosa de paternidade, prevista na Lei nº 8.560/92 e no
Provimento nº 16/2012 do CNJ. O procedimento, que tem natureza de jurisdição
voluntária, inicia-se na serventia do Registro Civil das Pessoas Naturais, nos
casos de registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida.
A genitora ou o(a) filho(a) maior fará ao Oficial do RCPN a indicação do maior
número possível de elementos para identificação do genitor e, após o
preenchimento de termo, o procedimento será remetido ao juiz, que procederá com
a oitiva da genitora e a notificação do suposto genitor em juízo. Confirmada a
paternidade, será lavrado termo de reconhecimento e remetida certidão ao
Oficial da serventia, para a devida averbação. Se o suposto genitor não atender
a notificação judicial, ou negar a paternidade, o Juiz remeterá os autos ao
Ministério Público ou à Defensoria Pública para que intente, havendo elementos
suficientes, a ação de investigação de paternidade.
Considerando a
possibilidade de cooperação entre as serventias, os órgãos judiciais e o
Ministério Público, inclusive a realização de atos de comunicação processual e
a tomada de depoimentos pelos delegatários, a Corregedoria-Geral do Estado do
Rio de Janeiro, ao regulamentar a averiguação oficiosa de paternidade em seu
Código de Normas (art. 746), estabeleceu regras que permitem a prática de
alguns atos do procedimento no âmbito das serventias: a) há previsão de
tombamento e autuação do procedimento administrativo no Serviço do RCPN
competente com a juntada de documentos indispensáveis; b) a notificação ao
suposto genitor será expedida pelo próprio Oficial do RCPN, de ofício, para que
se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída, no prazo de trinta dias;
c) se o genitor comparecer e negar a paternidade, o Oficial tomará por termo as
suas declarações, remetendo o procedimento ao juízo competente ou ao Ministério
Público, conforme o caso; e) se o suposto genitor comparecer e confirmar a
paternidade, será lavrado o termo de reconhecimento, sendo remetidos os autos
ao juízo ou ao Ministério Público, conforme o caso, para análise e determinação
ou não da averbação correspondente; f) caso o genitor não atenda a notificação
ou se esta for negativa, os autos serão remetidos ao Juiz ou ao Ministério
Público para as providências cabíveis.
Nota-se que, embora
permitida a realização de atos de comunicação e a tomada de declarações por
termo pelos Oficiais do RCPN, o que permite a tramitação e a finalização do
procedimento de forma mais célere, restou mantida a participação do
representante do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica e, bem assim,
a atuação judicial.
Outra interessante
medida de cooperação, consubstanciada no compartilhamento de provas e de atos
processuais, consta do Provimento nº 65/2017 do CNJ, que regulamenta a
usucapião extrajudicial. Nos termos do art. 2º, §3º, na hipótese de desistência
do processo judicial para fins de utilização da via extrajudicial, homologada a
desistência ou deferida a suspensão, poderão ser utilizadas as provas
produzidas na via judicial no âmbito da serventia do Registro de Imóveis
correspondente. Na realidade, entende-se que não apenas as provas, mas todos os
atos processuais já praticados podem ser utilizados na via extrajudicial. Nesse
sentido é o teor do enunciado nº 50 da II Jornada de Prevenção e Solução
Extrajudicial dos Litígios do CJF18. Entende-se, ademais, que o aproveitamento
de atos processuais deve ser interpretado como uma via de mão dupla, de modo
que os atos praticados no cartório extrajudicial sejam também aproveitados em
juízo, na hipótese de desistência ou impossibilidade de continuação do
procedimento na via extrajudicial.
Por fim, é importante
destacar a atuação dos próprios órgãos judiciais que, por intermédio de
decisões ou da edição de atos normativos, têm garantido a facilitação da
tramitação de procedimentos desjudicializados, através da prática de atos
cooperativos praticados pelas serventias, pelo Ministério Público e pelo
Judiciário.
Isso tem acontecido,
por exemplo, nos casos de inventário por escritura pública, em razão da
restrição contida no art. 610 do CPC, no sentido de que, se houver testamento
ou herdeiros incapazes, não se admite a via extrajudicial. Há decisões
judiciais que têm permitido o inventário por escritura, ainda que haja
incapazes, mediante a concessão de alvará judicial, desde que resguardados os
seus interesses19.
Além disso, há
iniciativas como a do juízo da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões e
de Cartas Precatórias Cíveis da Comarca de Rio Branco, cujo titular é o juiz
Edinaldo Muniz dos Santos, que editou a Portaria nº 5914-12, de 08.09.202120, a
qual dispõe sobre a realização de inventário extrajudicial, em tabelionatos de
notas, quando houver herdeiros interessados incapazes. A minuta final da
escritura deve ser previamente submetida à aprovação da vara, antecedida de
manifestação do Ministério Público, a fim de que sejam protegidos os interesses
dos herdeiros incapazes.
O inventário
envolvendo menores, nesses termos, é elaborado extrajudicialmente, mas depende,
para a sua validade, de manifestação favorável do Ministério Público e de
aprovação do juízo competente. A tramitação em juízo se torna evidentemente
menos complexa, a partir de uma atuação conjunta do órgão judicial, do
Ministério Público e da serventia extrajudicial, o que facilita sobremaneira a
solução da questão relativamente a todos os envolvidos.