A
atividade empresária, seja qual for o ramo de atuação, é desenvolvida pelos
agentes econômicos em seus estabelecimentos comerciais, conceituado pelo Código
Civil, como todo o complexo de bens — materiais ou imateriais, utilizados na
consecução de sua atividade.
Por
vezes, o estabelecimento comercial é instalado em imóveis de terceiros,
ocasiões em que, a relação se materializa por meio de contrato de locação comercial.
Tamanha é a importância da locação comercial que o legislador, em alguns casos,
garante ao locatário o direito de renovação compulsória do contrato de aluguel
comercial, visando a garantir a continuidade do exercício da atividade
empresária, primando em essência pelos princípios constitucionais da livre
iniciativa e da função social da empresa.
Os
contratos de locação (residencial ou comercial), podem ser garantidos por
fiança, com regulamentação dada pelo artigo 37, II da Lei nº 8.245/1991 [1],
conhecida por Lei do Inquilinato.
A
fiança é compromisso pessoal prestado por terceiro com vistas a garantir o
adimplemento de determinada obrigação. Por meio do referido instituto, o fiador
assume o compromisso com o credor de, em caso de inadimplência por parte do
afiançado, assumir o cumprimento integral da obrigação e caso não o faça, pode
ter seu patrimônio pessoal atingido, até a satisfação integral do crédito.
Sabe-se
que toda penhora deve obedecer a ordem legal estabelecida no artigo 835 do CPC
e que por certo existem alguns bens que são impenhoráveis, como se extrai do
artigo 833 do diploma processual civil.
Contudo,
a regra de impenhorabilidade que talvez seja mais conhecida é a do "bem de
família" que encontra respaldo na Lei n. 8.009/90, que em seu artigo 1º
assim dispõe: "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade
familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil,
comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos
cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam,
salvo nas hipóteses previstas nesta lei".
Ocorre
que em 8/3/2022, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, por sete votos a
quatro, reafirmando jurisprudência assentada em 2010, contra uma corrente
contrária iniciada em 2018 por sua 1ª Turma, decidiu ser possível a penhora de
bem de família dado em garantia pelo fiador em contrato de locação de imóvel
comercial para quitar dívida deixada pelo inquilino.
No
julgamento do RE 1.307.334/SP, submetido ao rito da Repercussão Geral (Tema
1.127), o relator ministro Alexandre de Moraes, baseou seu voto, ainda não
oficialmente publicado, em sete pilares de fundamentação:
1) A evolução do direito à moradia —
Com a EC 26 de 14/02/2000, o direito à moradia foi elevado ao nível
constitucional, garantindo o mínimo existencial para sobrevivência digna do ser
humano. Assim, o STF teve de enfrentar a constitucionalidade da exceção
prevista no inciso VII do artigo 3º da Lei nº 8.009/90, que excluía o único
imóvel do fiador de obrigação de contrato de locação da proteção da
impenhorabilidade do bem de família. Embora em 2006 já houvesse entendimento
favorável à citada previsão legal, a temática foi levada, em 2010, à
Repercussão Geral, pelo Tema 295, quando seu Tribunal Pleno fixou a tese da
constitucionalidade da penhora de bem de família de fiador. Em 2015, o STJ
seguiu a tese, editando sua Súmula 549;
2)
2)
A inflexão da jurisprudência nos casos de locação comercial — A ideia da
impenhorabilidade do bem de família do fiador ganhou força com o julgamento da
Primeira Turma do STF no RE 605.709, de 12/06/2018, de relatoria do ministro
Dias Toffoli. Nesse caso isolado, a divergência aberta pela ministra Rosa Weber
entendeu inexistir sintonia da desproteção do bem de família do fiador de
locação comercial com o Tema 295 da Repercussão Geral, pela quebra da isonomia
decorrente do favorecimento do comércio do devedor principal em sacrifício do
direito de moradia do fiador;
3)
Aplicabilidade das diretrizes do Tema 295 à Locação comercial — No julgamento
do RE 608.709, o então vencido relator ministro Dias Toffoli não vislumbrou
distinção entre o Tema 295 e a fiança em contrato de locação de imóvel
residencial, pela ausência de distinção do inciso VII do artigo 3º da Lei nº
8.009/90 ao tipo de locação. Se se a legislação não faz entre locações
residencial e comercial, seria o tratamento distinto pelo intérprete que
violaria o princípio da isonomia;
4)
A livre disposição do bem de família pelo fiador — O proprietário tem a
faculdade de dispor da coisa e a Lei n. 8.009/90 apenas prevê a
impenhorabilidade do imóvel. Citada lei não impõe a inalienabilidade ou a
impossibilidade de onerá-lo. Portanto, o fiador proprietário tem a liberdade de
responder ou não com o seu patrimônio, no qual se inclui o seu único imóvel.
Vedar tal possibilidade violaria o princípio da boa-fé objetiva;
5)
A livre iniciativa e o direito à moradia. Consequências do enfraquecimento da
garantia nas locações comerciais — A livre iniciativa é um dos fundamentos da República,
artigo 1º, IV, CF. A impenhorabilidade do bem de fiador de locação comercial
impactaria a liberdade de empreender do locatário, pois a fiança é a mais
usual, menos burocrática, menos onerosa e mais aceita garantia pelos locadores,
por ser mais segura. A fiança não descapitaliza o locatário, que pode investir
todo seu capital no empreendimento, em vez de constituir outras garantias mais
onerosas. Na maioria dos casos, empresas de micro e pequeno porte são os
locatários e o fiador é o próprio sócio da pessoa jurídica, o que facilita o
desenvolvimento do seu negócio empresarial e prestigia sua autonomia da
vontade. Caso se entenda impenhorável o bem de família do fiador de contrato de
locação comercial, o locatário seria prejudicado, pois o locador poderia exigir
a prova de propriedade do fiador de mais de um imóvel, dificultando a própria
locação.
6)
Isonomia entre locatário e fiador — A lei do inquilinato não distingue o fiador
de locação residencial do fiador de locação comercial para fins de possibilidade
da penhora do bem de família. A lei assegurou que ambos os fiadores estão em
situação idêntica. Logo, não merecem tratamento jurídico distinto.
7)
Proteção do direito social ao trabalho e da defesa do consumidor — A exceção
prevista pela Lei nº 8.009/90 propicia acesso à renda e trabalho, que são
direitos de idêntica estatura ao da moradia. Pelo trabalho o homem garante o
seu sustento e o desenvolvimento do país. O empreendedorismo é uma forma de
trabalho e depende da locação comercial para viabilizar a atividade
empresarial. A locação ao empresário diminui seus custos, inclusive aos menores
que não possuem capital para adquirir imóvel próprio. A fiança em locações
comerciais, ao trazer segurança ao locador e menos despesas aos locatários,
viabiliza a oferta de imóveis para aluguel, propicia a concorrência, que reduz
os valores locatícios, diminuindo o custo fixo dos locatários, que poderão
reduzir os preços dos bens e serviços vendidos, a beneficiar o consumidor em
última análise.
Percebe-se
que o STF, ao não acolher o posicionamento da minoria, então representado pelo
RE 605.709, distanciou-se de uma análise puramente principiológica do Direito.
Rumou o Pretório Excelso a uma análise mais ao seu cunho econômico, sem, no
entanto, descurar-se dos valores carregados pelos textos constitucional e
legal. Atento ao impacto prático de sua criação normativa na vida das pessoas,
em especial, do empresário, também demonstrou preocupação com o valor
constitucional da segurança jurídica ao manter sua jurisprudência.
Fica
aberto o debate e colocada nossa atenção aos efeitos da decisão no mercado de
locações comerciais, especialmente, no período pós-pandemia.
[1]
Artigo 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as
seguintes modalidades de garantia:
(...)
II
- fiança;
Rafael Campos Macedo Britto é advogado, professor
universitário, especialista em Direito Empresarial, presidente da Comissão de
Direito Empresarial da OAB/MS e sócio proprietário do escritório Britto &
Simões Advogados.
Eduardo Rezende Campos é advogado, especialista em
Direito Imobiliário e Processo Civil, membro da Comissão de Direito
Imobiliário, Urbanístico, Registral e Notarial da OAB-MS e do Ibradim, sócio
proprietário do escritório Eduardo Rezende Campos Advocacia.
Fonte:
Consultor Jurídico