O
vocábulo "evicção" vem do latim evictio e significa desapossar
judicialmente ou recuperar uma coisa. Para o direito civil, evicção é a perda
de um bem por ordem judicial ou administrativa, em razão de um motivo jurídico
anterior à sua aquisição.
Em outras
palavras, é a perda de um bem pelo adquirente, em consequência de reivindicação
feita pelo verdadeiro dono. Um exemplo de evicção se dá quando alguém vende um
objeto e, posteriormente, descobre-se que ele não pertencia ao vendedor, mas a
um terceiro.
Como
explicou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo de Tarso
Sanseverino, no Recurso Especial 1.342.345, a evicção, segundo os artigos 447 e
seguintes do Código Civil, consiste na perda total ou parcial da propriedade de
bem adquirido em virtude de contrato oneroso, por força de decisão judicial ou
ato administrativo praticado por autoridade com poderes para a apreensão da
coisa – por exemplo, um delegado de polícia ou a Receita Federal.
Segundo
Sanseverino, além das hipóteses tradicionais de perda da coisa por decisão
judicial, passou-se a reconhecer a ocorrência de evicção também nos casos de
apreensão por ato administrativo praticado por autoridade com poderes para
isso.
"A
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se nesse sentido,
exigindo apenas que a apreensão pela autoridade administrativa decorra de fato
anterior à aquisição do bem", afirmou.
Sobre os
efeitos da evicção, Sanseverino observou que o artigo 450 do Código Civil
estabelece que o adquirente que perdeu o bem pode postular as seguintes
medidas: restituição integral do preço pago; indenização dos frutos que tiver
sido obrigado a restituir; indenização pelas despesas dos contratos e demais
prejuízos resultantes da evicção; e ressarcimento das despesas processuais com
custas e honorários de advogado.
Nesta
matéria, são apresentados alguns julgados do STJ que permitem compreender com
mais clareza quando é possível falar de evicção, quais são as consequências
desse instituto e qual é o prazo para pleitear eventual indenização pela perda
do bem.
Restituição
integral do valor
A
jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que o evicto, pela perda sofrida,
tem o direito à restituição integral do valor do bem, calculado ao tempo em que
dele foi desapossado – ou seja, ao tempo em que se evenceu.
Com base
nesse entendimento, a Quarta Turma, por unanimidade, em setembro de 2020, negou
o pedido para analisar recurso especial que defendia que a restituição
correspondente a um imóvel, em decorrência do reconhecimento da evicção,
considerasse o valor do negócio celebrado entre as partes litigantes, e não o
preço de mercado apurado em perícia (AREsp 1.587.124).
No mesmo
sentido, foram apreciados o AREsp 363.825 e o REsp 132.012, quando a corte
concluiu que a pessoa condenada a fazer o ressarcimento deveria pagar ao evicto
o valor do bem apurado no momento em que se deu a evicção, correspondente à
perda sofrida, como preceitua o artigo 450, parágrafo único, do Código Civil.
Exercício
dos direitos resultantes da evicção
Para que
o evicto possa exercer os direitos resultantes da evicção, na hipótese em que a
perda da coisa tenha sido determinada pela Justiça, não é necessário o trânsito
em julgado da decisão. Esse foi o entendimento da Quarta Turma ao apreciar o
Recurso Especial 1.332.112.
Segundo o
relator, ministro Luis Felipe Salomão, há situações em que os efeitos da
privação do bem se consumam a despeito da existência de decisão judicial ou de
seu trânsito em julgado, desde que haja a efetiva ou iminente perda da posse ou
da propriedade, e não uma mera cogitação da perda ou limitação desse direito.
Para o
magistrado, embora o trânsito em julgado confira o respaldo ideal para o
exercício do direito oriundo da evicção, não se pode ignorar que, muitas vezes,
o processo permanece ativo por muitos anos, ocasionando prejuízos consideráveis
advindos da constrição imediata dos bens do evicto, que aguarda,
"impotente", o trânsito em julgado da decisão que já lhe assegurava o
direito.
Salomão
lembrou que o Código Civil de 1916 somente admitia a evicção mediante sentença transitada
em julgado. Todavia, o Código Civil de 2002, "além de não ter reproduzido
esse dispositivo, não contém nenhum outro que preconize expressamente a
referida exigência".
Dessa
forma, "ampliando a rigorosa interpretação anterior, jurisprudência e doutrina
passaram a admitir que a decisão judicial e sua definitividade nem sempre são
indispensáveis para a consumação dos riscos oriundos da evicção", concluiu
o relator.
Responsabilidade
negocial
Para a
ministra Nancy Andrighi, a evicção representa um sistema especial de
responsabilidade negocial decorrente da perda total ou parcial de um direito,
atribuído, por sentença, a outrem, cujo direito é anterior ao contrato de onde
nasceu a pretensão do evicto.
"Se
tal direito não existe ou se, existindo, dele não for privado, total ou
parcialmente, o reivindicante, não há falar em evicção", afirmou a
magistrada no julgamento do REsp 1.779.055.
No caso
julgado pela Terceira Turma, um procurador munido de procuração em causa
própria celebrou contrato de compra e venda de imóvel com terceiros, mas a
propriedade do mandante foi considerada inexistente por sentença.
Dessa
forma, a hipótese de evicção foi afastada, pois o imóvel objeto do contrato
celebrado entre o mandatário e os compradores não coincidia com o imóvel cujo
domínio foi atribuído a terceiro por sentença judicial transitada em julgado,
exarada na ação de reintegração de posse ajuizada pelos compradores.
Assim,
para a ministra, se o imóvel objeto do contrato não existia, seu domínio não
poderia ter sido transferido, pois isso seria transferir o domínio de nada.
Por outro
lado, se o imóvel existe, mas não corresponde ao objeto da ação de reintegração
de posse ajuizada pelos compradores, não foram eles privados do bem que consta
da escritura. "Em nenhuma das duas hipóteses, portanto, se caracteriza a
evicção", completou a magistrada.
Pagamento
de dívida para evitar evicção
Em abril
de 2021, o STJ confirmou o entendimento de que, se o adquirente de um imóvel
afasta a evicção mediante a quitação da dívida de terceiro, cabe-lhe mover ação
de indenização contra quem lhe vendeu o bem, responsável por salvaguardá-lo dos
efeitos de uma possível evicção.
O REsp
1.907.398, analisado pela Terceira Turma, tratou do caso de uma empresa que
adquiriu um imóvel em 2002, não sem antes se certificar de que não havia
pendência judicial ou fiscal contra a vendedora.
No
entanto, algum tempo depois, ela foi surpreendida com a penhora do bem,
determinada em execução fiscal promovida pelo Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) contra a proprietária anterior.
Para
evitar o leilão, a empresa efetuou o pagamento da dívida previdenciária e, ao
ajuizar ação regressiva contra a vendedora, fundamentou seu pedido no instituto
da sub-rogação, previsto no artigo 346, II e III, do Código Civil.
O
ministro Villas Bôas Cueva, ao analisar o recurso da vendedora do imóvel,
reformou o acórdão recorrido e esclareceu que não é adequada a propositura de
ação regressiva fundada no instituto da sub-rogação, se o alienante não era o
responsável pelo pagamento da dívida quitada pelo adquirente.
O
magistrado lembrou que a jurisprudência do STJ entende que, tendo o próprio
comprador afastado a evicção mediante a quitação da dívida de terceiro,
cabe-lhe mover ação indenizatória contra o alienante, para se ressarcir das
quantias desembolsadas.
Isso
porque, segundo o relator, "os pressupostos para o reconhecimento do
direito de regresso em favor do terceiro que efetiva o pagamento de determinada
dívida para não ser privado de direito sobre imóvel são substancialmente
distintos daqueles necessários para se reconhecer o dever de indenizar, que
pressupõe a existência de dano, culpa e nexo causal.
Villas
Bôas Cueva destacou ainda que, na ação de indenização, o alienante poderia ser
responsabilizado diretamente pelos prejuízos causados ao adquirente,
especialmente se constar da escritura de compra e venda a inexistência de
qualquer ação ou ônus pendente sobre o imóvel.
Transferência
livre e desembaraçada de veículo
Caracteriza
evicção a inclusão de gravame capaz de impedir a transferência livre e
desembaraçada de veículo objeto de compra e venda. Essa foi a conclusão da
Terceira Turma no julgamento do REsp 1.713.096.
Para o
colegiado, a inclusão de um gravame capaz de reduzir a serventia do veículo
também caracteriza a evicção, mesmo inexistindo a perda da posse ou do domínio
do bem por parte do comprador e da agência que intermediou o negócio.
Conforme
a relatora, ministra Nancy Andrighi, não se sustentou a tese de que a decisão
irrecorrível, que libera o veículo de qualquer restrição em seu cadastro,
afasta por completo a alegada evicção, fundamento para o pedido indenizatório.
"Conquanto,
realmente, tenha a adquirente se mantido na posse do veículo por determinado
período de tempo, o fato de ter sido em seguida constituído o gravame, tornando
necessário o ajuizamento de embargos de terceiro para que ela pudesse obter a
respectiva liberação para efetuar o registro, evidencia o rompimento da
sinalagmaticidade das prestações, na medida em que se obrigou o recorrente –
alienante – a promover a transferência livre e desembaraçada do bem à
adquirente, sob pena de responder pela evicção", afirmou a relatora.
Para
Nancy Andrighi, é dever do alienante transmitir ao adquirente do veículo o
direito sem vícios não consentidos. Dessa forma, fica caracterizada a evicção
na hipótese de inclusão de gravame capaz de impedir a transferência livre e
desembaraçada do veículo para o novo proprietário.
Diante
disso, decidiu a turma, "deve ser a intermediadora do negócio jurídico de
compra e venda de veículo ressarcida dos prejuízos causados pelo alienante, em
virtude da resolução do contrato por conta da ocorrência da evicção".
Em seu voto,
Nancy Andrighi mencionou ainda que o Código de Processo Civil revogou
expressamente o artigo 456 do Código Civil de 2002, dispondo o parágrafo 1º do
artigo 125 do CPC que, na hipótese de evicção, o direito regressivo será
exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar
de ser promovida ou não for permitida.
Prazo
prescricional para ressarcimento por evicção
"Seja
a reparação civil decorrente da responsabilidade contratual ou extracontratual,
ainda que exclusivamente moral ou consequente de abuso de direito, a prescrição
das pretensões dessa natureza originadas sob a égide do novo paradigma do
Código Civil de 2002 deve observar o prazo comum de três anos."
Com base
nesse entendimento, a Terceira Turma julgou o REsp 1.577.229, interposto em
ação de ressarcimento de prejuízo decorrente de evicção.
Como o
ordenamento jurídico brasileiro não prevê expressamente o prazo prescricional
para ações de indenização decorrentes da evicção, o colegiado discutiu qual
prazo deveria ser aplicado: o especial, de três anos, baseado no artigo 206,
parágrafo 3º, IV ou V, do Código Civil, ou o prazo geral, de dez anos, previsto
no artigo 205 e aplicado no acórdão recorrido.
Ao
decidir, a relatora, ministra Nancy Andrighi, citou decisão da Segunda Seção,
tomada sob o rito dos recursos repetitivos (REsp 1.360.969), na qual o
colegiado firmou o entendimento de que "não há mais suporte jurídico legal
que autorize a aplicação do prazo geral, como se fazia no regime anterior,
simplesmente porque a demanda versa sobre direito pessoal".
De acordo
com Nancy Andrighi, como a garantia por evicção representa um sistema especial
de responsabilidade negocial, infere-se que "a natureza da pretensão
deduzida nesta ação é tipicamente de reparação civil decorrente de
inadimplemento contratual, a qual, seguindo a linha do precedente
supramencionado, submete-se ao prazo prescricional de três anos".
Garantia
dos riscos da evicção
Para a
Terceira Turma, o risco da evicção não atinge a instituição financeira que apenas
financiou a compra do bem. O entendimento foi adotado pelo colegiado no
julgamento do EREsp 1.342.145, que eximiu o Banco Volkswagen da obrigação de
ressarcir a empresa compradora de um carro financiado que foi apreendido pela
Receita Federal por causa de problemas na importação. A empresa adquiriu o
veículo do primeiro comprador, que lhe transferiu o financiamento.
De acordo
com o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o dever de garantir os
riscos da evicção é restrito ao alienante do veículo e não se estende à
instituição que concedeu o financiamento sem ter vínculo com o importador.
Inicialmente,
um consumidor firmou contrato de alienação fiduciária com o banco para a
aquisição de um Porsche Carrera modelo 911. Depois, vendeu o veículo para uma
empresa e repassou o financiamento, com a anuência da instituição financeira.
O
automóvel, porém, foi apreendido pela Receita Federal devido a irregularidades
na importação. A empresa ajuizou ação contra o espólio do vendedor e o banco. O
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) não reconheceu a ilegitimidadepassiva
do banco, por entender que todos aqueles que participaram do negócio devem
responder pelos prejuízos suportados por terceiro. Em recurso ao STJ, o banco
insistiu na alegação de ilegitimidade.
Em seu
voto, Sanseverino explicou que a responsabilidade pelos riscos da evicção é do
vendedor e, desde que não haja no contrato cláusula de exclusão dessa garantia,
o comprador que perdeu o bem poderá pleitear a restituição do que pagou. No
caso julgado, entretanto, o ministro concluiu que essa restituição não poderia
ser exigida do banco.
Isso
porque, de acordo com o magistrado, precedentes do STJ excluem a
responsabilidade da instituição financeira em relação a defeitos do produto
financiado: no REsp 1.014.547, a Quarta Turma isentou o banco porque ele apenas
forneceu o dinheiro para a compra.
"Não
há possibilidade de responsabilização da instituição financeira, que apenas
concedeu o financiamento para a aquisição do veículo importado, sem que se tenha
evidenciado o seu vínculo com o importador", concluiu Sanseverino.
Boa-fé é
requisito essencial
Quando
reconhecida a má-fé do comprador de imóvel no momento de fechar o negócio, ele
não pode, sob o argumento de ocorrência de evicção, propor ação de indenização
para reaver do vendedor o valor gasto na aquisição do bem.
A decisão
foi dada pelo ministro Marco Aurélio Bellizze no AREsp 1.597.745, que confirmou
acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) no sentido da
impossibilidade de aplicar o teor do artigo 449 do Código Civil – segundo o
qual "tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta,
se não soube do risco da evicção" – em caso que envolveu uma fazenda alvo
de litígio.
O imóvel
rural foi vendido por preço bem abaixo do mercado, por estar pendente de
julgamento uma discussão possessória. Após a compra, assumindo o risco de
eventual ineficácia no regular exercício da sua posse, o comprador foi expulso
do local e entrou com ação indenizatória para ter de volta o valor pago.
O espólio
do comprador questionou o acórdão, afirmando que a corte estadual não
reconheceu seu direito à restituição do valor pago ao vendedor, que alienou o
imóvel e recebeu, mas não transferiu a propriedade. Alegou que nunca se soube
que havia invasores na área; portanto, os herdeiros não poderiam sofrer os
prejuízos decorrentes da impossibilidade de complementação da transação.
Segundo
Bellizze, para a configuração da evicção e a consequente extensão de seus
efeitos, exige-se a boa-fé do adquirente; porém, no caso julgado, diante das
provas e dos termos contratuais apresentados, o TJMT concluiu pela ausência de
boa-fé e pelo conhecimento prévio acerca dos problemas possessórios que
envolviam o imóvel.
Dessa
forma, entendeu o ministro, a ausência de boa-fé do comprador e o seu
conhecimento prévio sobre a situação do imóvel afastaram o direito à
restituição do valor com base na evicção.
Fonte: STJ