GLOBO teve acesso ao material que mostra que os escravos
não eram tratados como humanos, mas como objetos
“A escrava de nome Joaquina, depois de meu falecimento, fica
forra e liberta como se nascesse de ventre livre”. A frase aparece no
documento de 20 de junho de 1845, em que Maria Lourenço da Conceição
concede, após sua morte, a alforria à Joaquina pelos “bons serviços
prestados”. A escritura de 175 anos estava guardada em um dos
cartórios de Guarulhos e hoje faz parte do projeto Memória Notarial, que
resgata e restaura documentos históricos arquivados em
cartórios do Brasil.
O GLOBO teve acesso a alguns desses documentos, que datam
do século XIX, o último da escravidão no Brasil, abolida em
1888. O material, parte ainda na caligrafia da
época, registra o tratamento desumanizado que os
escravos recebiam, tratados como objetos.
“Digo eu, Maria Lourenço da Conceição, que entre meus bens
que possuo, sou senhora e possuidora de uma escrava de nome Joaquina”, escreve
a mulher na carta
de liberdade que concede a outra mulher, que era
escravizada.
A objetificação é ainda mais clara em
dois outros documentos, ambos de 1871, em que são firmadas a venda
de duas mulheres — uma delas com seu filho de nove
meses.
“Perante as testemunhas pelo dito
Miguel Antonio Condolpo, me foi dito que ajusto título era senhor e
possuidor de uma escrava com um filho, ela por nome Thereza e o filho José,
este de idade de nove meses (....)”, diz uma das escrituras, que
continua: “Pela presente escritura vendia a Francisco Bueno de Siqueira,
pela quantia de um conto trezentos mil reis, (...) a posse e
domínio que nos ditos escravos tinha para que goze e desfrute como seus
ficarão sendo de hoje para sempre”.
Já a outra escritura descreve a mulher que
está sendo vendida como “a escrava de nome Gertrudes, preta fulla,
solteira, de quarenta anos de idade mais ou menos”. Ela é vendida pelo
valor de “um conto de réis” e, assim como
Thereza, o documento informa que seus compradores passaram a ter
propriedade sobre ela “de hoje para sempre”.
— Não havia registros de escravos, o que havia eram os
negócios feitos com os escravos. Então, as escrituras os tratavam como coisas,
como bens — explica Andrey Guimarães, vice-presidente do Colégio
Notarial do Brasil e responsável pelo projeto de resgate de documentos
históricos. — Em algumas escrituras que li encontrei muitas
descrições assim: “forte”, “braços longos”, “tal peso”, “bons dentes”,
“bom reprodutor”. Numa linguagem e nos critérios muito similares com o que hoje
a gente tem com animais. Havia até descrição de comportamento, se era calmo, se
era violento. Sempre com adjetivos não usados com humanos.
É possível notar o tratamento objetificado até em
aspectos mais subjetivos. Nas escrituras, todas as testemunhas e partes
do processo tinham nome e sobrenome. Os escravos, não.
O historiador Flávio dos Santos Gomes, autor de
“Dicionário da escravidão e liberdade”, “Mocambos e quilombos” e
“O alufá Rufino”, entre outros, afirma que essa era a lógica da
escravidão, de tratar os escravos como objetos e demonstrar o poder sobre
eles.
— A escravidão é uma linguagem. É a linguagem da
hierarquia, do poder. Isso é muito forte. O que está escrito nesses
documentos são coisas que socialmente não existem mais —
afirma.
Ventre livre
Quando a venda de Thereza foi firmada, em 13 de
novembro de 1871, a Lei do Ventre Livre havia sido assinada há pouco
mais de um mês. A legislação determinava que todo filho de
escrava nascido a partir da data que foi promulgada, em 28
de setembro, seria considerado livre.
No entanto, apesar do que dizia a lei, os
senhores de escravos achavam modos de contorna-la,
registrando, por exemplo, os bebês como se tivessem nascido antes do dia em
que a legislação entrou em vigor.
— O registro do nascimento era o registro religioso, o
batismo. E como não havia um prazo para isso, as crianças poderiam ser
batizadas depois, muitos senhores de escravos podem ter
tentado demonstrar que a filha daquela escrava tinha nascido antes de 28
de setembro — explica Gomes, que acrescenta que houve, depois,
processos-crimes de mulheres que lutaram para provar que seus filhos
nasceram depois da lei.
No entanto, mesmo que beneficiada pela Lei do
Ventre Livre, a criança ainda viveria dentro de um ambiente de
escravidão, já que sua mãe continua sob a condição de escrava.
— Juridicamente essa criança não era escrava, mas as
condições que vivia era de um ambiente de escravidão. Imagine que em um ano seu
filho nasce escravo, e no seguinte, seu outro filho nasce livre. Os dois serão
criados juntos — explica o historiador, que completa: — E essa
criança não pode ser vendida, porque ela é livre, ela foi batizada no livro dos
livres. Porém, vive em um cenário de liberdade num mundo cercado de
escravidão.
Antes mesmo que a lei existisse, já havia o conceito de
ventre livre. Isto é visto na carta de liberdade à Joaquina, em 1845, e
até antes, em
1831, na escritura que formalizou a alforria de Francisca, concedida após
a morte de sua dona.
“Digo eu, Luís Mariano Ferreira, ordeiro de minha
falecida Catherina Maria Conceição, que entre os bens
que a mesma possuía (...) uma mulata de nome
Francisca, filha de outra de nome Isabel, que tinha uma criança de
oito meses mais ou menos, a qual possuía como sua antes de sua morte”, diz
o documento, que ainda está na caligrafia da época, o que faz com que
alguns de seus trechos sejam ilegíveis. Ele continua: “(...) pela
presente lhe deu plena liberdade, ficando livre de sua escravidão de hoje, para
todo sempre, como se de ventre livre nascesse”.
Além das escrituras de alforria e de venda de pessoas
escravizadas, há também os registros nos cartórios brasileiros sobre outras
movimentações feitas pelos senhores de escravos, como a doação de bebês,
uma forma de burlar a lei da época que impedia separar crianças de suas
mães vendendo-as. Essas documentações estão guardadas em ofícios pelo Brasil; a
intenção do projeto Memória Notarial é restaurá-las de forma que seu acesso
seja expandido para o público.
— O que motivou o Colégio Notarial do Brasil a buscar
essas escrituras e trazê-las a público é justamente fazer com que as
pessoas tenham, a partir do impacto de que elas geram, um ganho de
consciência — diz Guimarães, que completa: — Aquele que não se
atenta a história, corre o risco de repeti-la. A importância [desses
documentos] é você lembrar sempre a sociedade sobre o que já ocorreu, e a
partir dessa lembrança saber o que não deve ocorrer mais.
Fonte: O Globo