A lei 13.874/19 resgata o conceito liberal clássico de
economia para propor relativo afastamento da intervenção estatal das relações
privadas, flexibilizando normas de criação e manutenção da atividade
empreendedora
A bem sabida e fundamentada insatisfação da iniciativa
privada com a excessiva intervenção do Poder Público na criação e
desenvolvimento de suas atividades sempre gerou considerável insegurança no
particular, o qual, diante de entraves burocráticos e legais, se vê, não raro,
prejudicado e desestimulado à prática do empreendedorismo.
Assim, especialmente diante do presente quadro de crise
econômica no Brasil, foi criada a medida provisória 881, de 2019, convertida na
lei 13.874, sancionada em 20/9/19, com a finalidade de
fomentar o crescimento, desenvolvimento e geração de emprego e renda com foco
na iniciativa e prática liberal do empreendedorismo privado.
Conhecida como Lei da Liberdade Econômica, a lei 13.874/19
resgata o conceito liberal clássico de economia para propor relativo
afastamento da intervenção estatal das relações privadas, flexibilizando normas
de criação e manutenção da atividade empreendedora. É objeto deste artigo
apresentar a parte da lei 13.874/19 criada para trazer maior segurança jurídica
à manutenção judicial da atividade privada, relativamente à implementação de
nova sistemática de interpretação do maior instrumento de manifestação da
autonomia privada: o contrato.
Pois bem, a interpretação ganha especial relevo quando a lei
ou o contrato possuem omissões, imprecisões e até contradições que permitem o
uso das fontes do direito (em especial, os princípios gerais de direito) para
direcionar a solução de eventual conflito travado em razão dessa insuficiência
ou ambiguidade. É nesse contexto que ocorre a intervenção do Poder Público na
relação entre as partes, por meio do processo judicial, presidido pelo(a)
juiz(a) de direito, que é o agente público dotado de legitimidade para fazer o
controle judicial da atividade econômica.
Um contrato de mútuo bancário, por exemplo, que tem sua taxa
de juros remuneratórios estabelecida em patamar significativamente superior à
taxa média de mercado, é considerado abusivo, ou seja, configura excessiva
onerosidade e, portanto, é passível revisão pelo Poder Judiciário1. Observa-se,
no caso, evidente conflito entre o princípio da autonomia privada, que traria a
premissa de que o contrato deve ser cumprido porquanto firmado livremente entre
partes capazes, e o princípio da função social do contrato, que, diante de
excessiva onerosidade, concluiria pela abusividade e revisão da cláusula, visto
que não há igualdade entre as partes e distribuição equilibrada de custos e
benefícios.
Outro ponto que demonstra esse conflito de princípios no
exemplo citado acima é a abertura deixada para o julgador mensurar o patamar
significativamente superior à taxa média de mercado.
Sobre o critério para se considerar abusiva a taxa de juros remuneratória,
o próprio STJ já firmou diversos posicionamentos: uma vez e meia2, ao
dobro3 ou ao triplo4 da taxa média de juros. Ainda, o Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já firmou entendimento de ocorrência de
abusividade em patamar superior a 20% da taxa média de mercado5. Temos também
entendimento nos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio Grande do Norte e Rio
de Janeiro no sentido de que o mero fato de estar acima da taxa média de
mercado já é suficiente para revisar a taxa de juros. Por fim também há
posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no sentido de que
não seria cabível sequer a revisão da taxa de juros do contrato, visto que a
parte que contratou o empréstimo concordou com suas cláusulas por livre e espontânea
vontade.
E você que lê este artigo, em qual patamar entenderia
abusiva ou não a taxa de juros?
Ora, evidente, no exemplo citado, certo nível de
discricionariedade interpretativa e valorativa do julgador no momento de
aplicar critérios para revisar, ou não, o contrato, tanto pelos Tribunais
Estaduais quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. Essa intervenção prejudica
a atividade empresarial, exatamente porque se torna impossível a avaliação e
previsão dos riscos de se ter revisado em Juízo eventual contrato inerente ao
desenvolvimento da atividade empresarial, o que mereceu atenção do legislador
na promulgação da lei 13.874/19.
Criando dispositivos interpretativos que prestigiam a
independência, o senso de responsabilidade das partes e o cumprimento dos
contratos, prevendo a revisão apenas de maneira excepcional e limitada6, bem
como estabelecendo a prevalência da intervenção mínima e subsidiária do Estado,
mesmo as de ordem pública7, sobre o exercício das atividades econômicas8, a lei
13.874/19 representa exatamente um esforço para apresentar a resolução de
dúvidas hermenêuticas de modo a prestigiar a autonomia da vontade9.
Porém, ainda é cedo para dizer acerca do alcance e
efetividade da lei 13.874/19 no âmbito do Poder Judiciário e seu impacto na
economia. Trata-se, em realidade, de esforço do legislador para criar um
costume de responsabilidade e independência, evidentemente, com o fim de
permitir às partes máxima segurança jurídica nas relações negociais.
Fonte: Migalhas