É
inegável que as recentes alterações promovidas na Resolução nº 35/2007 [1] do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), notadamente pela Resolução nº 571/2024,
representam um marco significativo no fomento à desjudicialização e na
concretização do dever estatal de buscar, sempre que possível, a solução
consensual dos conflitos (artigo 5º, LXXVIII [2],
da Constituição c/c artigo 3º, §2º [3],
do Código de Processo Civil).
Ao
permitir a realização de inventários extrajudiciais mesmo com a presença de
interessados menores ou incapazes, condicionada à manifestação favorável do
Ministério Público (artigo 12-A, caput [4], da
Resolução 35/2007-CNJ), o Conselho Nacional de Justiça abre portas para uma
solução sucessória mais célere e eficiente.
Contudo,
a práxis notarial e registral se depara com um desafio
interpretativo. O artigo 12-A, §1º[5],
da referida resolução, ao orientar o tabelião de notas a propor o pagamento do
quinhão do incapaz em parte ideal de cada bem na partilha, e
vedar atos de disposição, parece delinear um único caminho como condição para
se obter a manifestação favorável do Ministério Público.
Surge,
então, a interrogação: estaria essa diretriz a engessar a atuação do Ministério
Público, cuja missão precípua é zelar pelo melhor interesse do
incapaz, à luz de sua independência funcional constitucionalmente assegurada?
Poderia a complexidade das situações fáticas demandar soluções diversas
daquelas estritamente previstas, sem que isso obste a via extrajudicial
consensual?
Independência
funcional do MP: pilar da proteção
A
Constituição de 1988 erigiu o Ministério Público à condição de instituição
permanente, essencial à função jurisdicional, , incumbindo-lhe a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (artigo 127, caput [6], da
Constituição). Dentre estes últimos, destaca-se a proteção dos interesses dos
incapazes (artigo 178, II [7],
do Código de Processo Civil). Para o fiel cumprimento de seu mister, a Carta
Magna assegurou aos seus membros a garantia da independência funcional (artigo
127, §1º [8],
da Constituição).
Essa
independência, reiteradamente afirmada pelo Supremo Tribunal Federal [9],
não é um privilégio, mas uma ferramenta indispensável para que o membro do
Ministério Público possa analisar cada caso concreto de forma isenta e
autônoma, livre de pressões externas ou hierárquicas no mérito de
sua atuação, buscando a solução que efetivamente melhor atenda aos direitos que
lhe cabe proteger.
Significa
que, ao analisar um plano de partilha em inventário extrajudicial, o membro do
Ministério Público não está adstrito a fórmulas pré-concebidas, mas sim
vinculado ao dever de encontrar a solução mais vantajosa e segura para
o incapaz naquela específica situação.
Princípio
do melhor interesse do incapaz: bússola da atuação
Paralelamente,
o princípio do melhor interesse do incapaz permeia todo o
ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no Direito de Família e
Sucessões.
Consagrado
na Constituição e em diplomas legais (como o Estatuto da Criança e do
Adolescente e Estatuto da Pessoa com Deficiência) e robustecido pela
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [10],
esse princípio exige uma análise casuística e concreta.
O
que é “melhor” para o incapaz não se define por regras abstratas e inflexíveis,
mas pela ponderação das circunstâncias fáticas.
Nessa
ordem de ideias, não raro, a atribuição de uma fração ideal em múltiplos bens
pode se revelar prejudicial ao incapaz. A formação de condomínios, como sabido,
é frequentemente fonte de litígios, dificulta a administração do patrimônio e
pode emperrar futuras alienações necessárias ao sustento ou educação do
incapaz.
Lado
outro, em certos cenários, a atribuição de um bem específico ou mesmo a
alienação de um ativo com o depósito judicial da quota-parte pode ser a solução
que manifestamente melhor atenda aos seus interesses. Impor a fragmentação
ideal do patrimônio, nesses casos, seria um retrocesso à proteção que a norma
visa garantir.
Harmonizando
normas: interpretação teleológica a serviço da desjudicialização
Diante
desse cenário, a interpretação meramente literal do §1º do artigo 12-A da
Resolução 35/2007-CNJ pode levar a um paradoxo: a opção pela via extrajudicial,
criada para simplificar e agilizar, seria inviabilizada justamente nos casos em
que a análise concreta do Ministério Público, pautada no melhor interesse do
incapaz e exercida com independência funcional, aponta para uma solução diversa
da partilha prevista na resolução.
Propõe-se,
assim, uma interpretação teleológica e sistemática da norma
administrativa. O fim colimado pelo Conselho Nacional de Justiça é
assegurar a proteção do incapaz mediante a chancela qualificada do Ministério
Público. A forma de partilha sugerida no artigo 12-A e parágrafos da Resolução
35/2007-CNJ representa um modelo geral, uma presunção relativa de
adequação, mas não a única via para atingir essa finalidade protetiva.
Quando
o membro do Ministério Público, de forma fundamentada e no exercício de sua
independência funcional, conclui que uma partilha alternativa (seja pela
adjudicação de bens específicos, seja por outra modalidade consensual que
resguarde o valor patrimonial do incapaz) atende melhor aos
interesses daquele que deve proteger, e havendo consenso entre todos os
herdeiros, não há razão lógica ou jurídica para obstruir a opção pela via
extrajudicial, lançando os interessados, necessariamente, à via jurisdicional
comum.
Impedir
a lavratura da escritura e o subsequente registro do título, nesse contexto,
significaria preterir o princípio do melhor interesse e
a independência funcional do Ministério Público em favor de uma
leitura restritiva da norma administrativa, contrariando o próprio espírito da
desjudicialização.
A
ponderação de interesses, similar àquela exigida na fundamentação das decisões
judiciais (artigo 489, §2º [11],
do Código de Processo Civil, por analogia), justifica que a análise concreta e
fundamentada do Ministério Público, atestando a vantagem da solução proposta
para o incapaz, prevaleça sobre a forma padrão, desde que garantida a segurança
jurídica do ato.
Procedimento
sugerido: segurança e previsibilidade
Para
conferir segurança e previsibilidade a essa abordagem harmonizadora, sugere-se
que, nos casos em que se vislumbre uma partilha diversa daquela estritamente
delineada no §1º do artigo 12-A da Resolução 35/2007-CNJ, o tabelião submeta
previamente o expediente, através do envio da minuta ou o plano de partilha
detalhado ao membro do Ministério Público, com as devidas justificativas e
documentos.
O
parecer favorável do Ministério Público deverá conter, de forma explícita e
fundamentada, as razões pelas quais a solução proposta atende ao melhor
interesse do incapaz, justificando o afastamento do modelo padrão da Resolução.
Somente após essa manifestação favorável específica e robusta, a escritura
seria lavrada, com menção do parecer no corpo do ato notarial e,
posteriormente, submetida a registro, acompanhada da íntegra do parecer.
Este
procedimento mitiga riscos, evita a lavratura de escrituras potencialmente
ineficazes e previne a necessidade de submissão do ato à apreciação do juiz
corregedor ou o indesejado retorno das partes à via judicial por discordância
ministerial (artigo 12-A, §4º [12],
da Resolução 35/CNJ c/c artigo 204 [13] da
Lei nº 6.015/1973), garantindo que a vontade consensual e a proteção do incapaz
caminhem juntas.
Conclusão
Em
suma, a louvável iniciativa do CNJ em ampliar o alcance dos inventários
extrajudiciais deve ser interpretada em harmonia com os pilares constitucionais
da independência funcional do Ministério Público e o primado do melhor
interesse do incapaz.
Reconhecer
a possibilidade de o MP, mediante parecer fundamentado, anuir com formas de
partilha diversas daquela exemplificada na resolução, desde que vantajosas ao
incapaz e consensuais, não significa afrontar a norma, mas sim aplicá-la de
forma teleológica e sistemática.
É
tempo de consolidar a via extrajudicial como um caminho eficaz e seguro,
confiando na plena capacidade do Ministério Público de, exercendo sua
independência funcional, tutelar adequadamente os interesses dos incapazes,
mesmo diante da miríade de situações que a vida real apresenta, superando a
rigidez de fórmulas abstratas em prol da justiça material no caso concreto.
A
colaboração entre tabeliães, registradores, Ministério Público e Poder
Judiciário, sob essa ótica harmonizadora, fortalecerá a desjudicialização e
garantirá a efetiva proteção a quem mais precisa.
[1] Resolução
nº 35/2007-CNJ: Disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a
inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção
consensual de união estável por via administrativa.
[2] Constituição
Federal: Art. 5º (…) LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação.
[3] Código
de Processo Civil: Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional
ameaça ou lesão a direito. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a
solução consensual dos conflitos.
[4] Resolução
nº 35/2007-CNJ: Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por
escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o
pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em
cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério
Público. (incluído pela Resolução n. 571, de 26.8.2024).
[5] Resolução
nº 35/2007-CNJ: Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura
pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento
do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um
dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério
Público. (incluído pela Resolução n. 571, de 26.8.2024).
§ 1º Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição
relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz. (incluído
pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
[6] Constituição
Federal: Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.
[7] Código
de Processo Civil: Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no
prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses
previstas em lei ou na Constituição Federal e
nos processos que envolvam: II – interesse de incapaz;
[8] Constituição
Federal: Art. 127. (…). § 1º – São princípios institucionais do
Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
[9] Supremo
Tribunal Federal: (…) O princípio da independência
funcional está diretamente atrelado à atividade
finalística desenvolvida pelos membros do Ministério Público,
gravitando em torno das garantias: a) de uma atuação livre no plano
técnico-jurídico, isto é, sem qualquer subordinação a eventuais recomendações
exaradas pelos órgãos superiores da instituição; e b) de não poderem ser
responsabilizados pelos atos praticados no estrito exercício de suas funções (…). HC 137637/DF, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em
6.3.2018. (HC-137637)
[10] Superior
Tribunal de Justiça: (…) O Superior Tribunal de Justiça firmou
entendimento de que nos processos que envolvam curatela deve prevalecer o
interesse da pessoa interditada em detrimento de quaisquer outras questões,
podendo ser mitigado, inclusive, o princípio da perpetuatio jurisdictionis,
previsto no art. 87 do CPC. (…) (CC n. 134.097/DF, relator Ministro Raul
Araújo, 2ª Seção, julgado em 28/10/2015, DJe de 5/11/2015.)
[11] Código
de Processo Civil: Art. 489. (…) § 2º No caso de colisão entre normas, o
juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada,
enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as
premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
[12] Resolução
nº 35/2007-CNJ: Art. 12-A. (…) § 4º Em caso de impugnação pelo
Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido
à apreciação do juízo competente. (incluído
pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
[13] Lei
nº 6.015/1973: Art. 204 – A decisão da dúvida tem natureza administrativa
e não impede o uso do processo contencioso competente.
Fonte:
Conjur