Fundamentos legais da territorialidade
O sistema notarial e registral brasileiro desempenha
função essencial para a garantia da cidadania, da segurança jurídica e do
desenvolvimento econômico. De acordo com dados do CNJ, existem mais de 12.253
serventias extrajudiciais espalhadas pelos 5.568 municípios brasileiros,
responsáveis por milhões de atos anuais e pela geração de mais de 106.021
empregos diretos. A relevância desse sistema é reforçada por iniciativas como o
programa "Cartório em Números", da ANOREG/BR - Associação
dos Notários e Registradores do Brasil, que evidencia sua eficiência e sua
contribuição para a sociedade.
A atividade notarial e registral, exercida em
caráter privado por delegação do Poder Público (CF/1988, art. 236), tem como
fundamento a segurança jurídica e a efetivação de direitos fundamentais. A
legislação assegura a gratuidade de diversos atos ligados à cidadania, como
registros de nascimento e óbito, expedição de segundas vias de certidões e
habilitação para casamento em casos de pobreza. Para garantir a
sustentabilidade econômica das serventias, a lei 8.935/1994 previu a
possibilidade de cumulação de atribuições, ao mesmo tempo em que fixou regras
rígidas de territorialidade, proibindo a prática de atos fora do município para
o qual foi conferida a delegação. Além disso, vedou-se expressamente a
instalação de sucursais, entendidas como unidades secundárias que
reproduziriam, em outro local, as atividades da serventia, o que afrontaria o
princípio da territorialidade e geraria concorrência desleal entre
delegatários.
O Tabelião de Notas exerce uma função pública
fundada na confiança tanto do Estado quanto dos particulares que a ele
recorrem. Sua escolha é livremente realizada pelas partes, independentemente do
domicílio destas ou da localização dos bens que sejam objeto dos atos, fatos ou
negócios jurídicos. Tal prerrogativa decorre do art. 8º da lei 8.935/1994,
segundo o qual "é livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja
o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio".
Entretanto, essa liberdade de escolha não elimina o limite territorial da
delegação conferida pelo Poder Concedente. Com efeito, dispõe o art. 9º da
mesma lei que "o tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício
fora do Município para o qual recebeu delegação".
Da conjugação desses dispositivos resulta que,
embora o Tabelião possa ser livremente eleito pelas partes, não lhe é permitido
praticar atos notariais fora da circunscrição territorial de sua delegação.
Dentro de sua área de competência, contudo, pode lavrar atos em qualquer local,
desde que conste no instrumento o lugar em que foram praticados, como ocorre
nos atos lavrados em diligência.
A restrição prevista no art. 9º da lei 8.935/1994
deve ser entendida como limite mínimo. Dentro de sua competência
organizacional, os Estados podem estabelecer regras ainda mais restritivas.
Exemplo disso é o Rio Grande do Sul, onde a atuação notarial foi limitada ao
âmbito distrital: "Os titulares de Serviços Notariais e de Registros, nos
distritos, carecerão de fé pública fora dos limites do distrito ou dos
indicados no ato delegatório das funções".
De todo modo, a concorrência entre notários na busca
por clientela e o desrespeito à competência territorial são práticas duramente
coibidas pelas Corregedorias-Gerais dos Estados, resultando em inúmeros
procedimentos administrativos disciplinares. Assim, é imperativo que a
competição entre Tabeliães de Notas se dê de maneira ética e leal, fundamentada
na qualificação profissional e na credibilidade institucional, sem recorrer a
expedientes típicos de mercado, tais como publicidade individual, redução de emolumentos,
campanhas comerciais ou intermediação indevida de serviços, práticas que
comprometem a dignidade e o prestígio da atividade notarial e registral
Nesse interim o presente artigo busca em análise
descritiva investigar, sem intenção de esgotar os caminhos possíveis, de como
se desenvolve o processo de deslocamento indevido de representantes municipais
ou oficiais cartorários a outros territórios, especialmente com intuito
de identificar os atores desse processo, bem como investigar à luz da
bibliografia pertinente os reflexos sociais, econômicos, jurídicos, sobre
capacidade Estatal e Território, sob o prisma do desenvolvimento local municipal.
A despeito da importância do setor, a prática
reiterada de atos notariais fora da circunscrição delegada tem provocado
preocupações de ordem jurídica, econômica e administrativa. Nesse sentido,
o CNB - Colégio Notarial do Brasil, secção do Mato Grosso do Sul
promoveu à Corregedoria Permanente de Naviraí - MS, através de ofício 9/24 a
comunicação de indício de ofensa à competência notarial através de práticas
atentatórias a atividade notarial e registral (art. 9º e art. 31, II, ambos da
lei Federal 8.935/1994). No referido documento, consta supostos atos de
violação de competência notarial pelo Serviço Notarial de Herculândia, no
município de IVATÉ-PR, CNS: 08.688-4
O expediente relata que, em consulta à CENSEC
- Central Eletrônica de Atos Compartilhados, verificou-se que o Serviço
Notarial de Herculândia, localizado no município de Ivaté-PR (CNS: 08.688-4),
lavrou diversas escrituras públicas envolvendo como parte o município de
Naviraí-MS. Como ainda não houve decisão definitiva sobre o caso, não se pode
afirmar com precisão se ocorreu o deslocamento da administração municipal até
outra localidade do Paraná para a prática dos atos ou, alternativamente, se foi
o próprio tabelião de Herculândia que se deslocou até Naviraí para realizá-los.
Diante dessa indefinição, mostra-se necessária a análise das duas hipóteses de
forma comparada.
Na primeira hipótese, observa-se que o Serviço
Notarial de Herculândia, localizado no Estado do Paraná, encontra-se a
aproximadamente 132,8 km do município de Naviraí, em Mato Grosso do Sul. Diante
disso, surge o questionamento: em respeito ao princípio da supremacia do
interesse público, qual seria a justificativa, sob a ótica do desenvolvimento
territorial, da capacidade estatal e dos princípios basilares do Direito
Público, para que a prefeita municipal realizasse sucessivos deslocamentos
entre Naviraí/MS e Ivaté/PR, assumindo custos significativos para os cofres
públicos? Além do gasto com tempo e transporte, arcado pelo próprio município
de Naviraí/MS, há de se destacar que tais atos também implicam perda de
arrecadação tributária local, especialmente do ISSQN, bem como dos repasses
vinculados destinados a setores essenciais, tais como o Fundo de Serventias
Deficiárias do Estado de Mato Grosso do Sul (Renda Mínima), o FUNADEP
(Defensoria Pública), o FUNDPGE (Procuradoria-Geral do Estado) e o FEADMP (Ministério
Público), além do ISSQN municipal. O prejuízo, portanto, não recai apenas sobre
a serventia notarial local, mas compromete toda a rede institucional de
financiamento de políticas públicas estaduais e municipais.
Noutro sentido, na hipótese de haver deslocamento
indevido de cartorários do município de Herculândia/PR para Naviraí/MS, há caso
de flagrante violação de regras de competência legal, ética, improbidade
administrativa e violações de direitos civis decorrente de anulabilidade de
diversas escrituras públicas por vício de legalidade, o que impacta
significativamente no município de Naviraí - MS e relações econômicas dos
titulares de propriedade que se baseiam em documento com insegurança jurídica.
O Código de Normas Extrajudiciais do Estado de São
Paulo, esclarece a respeito da concorrência notarial, que deve ser pautada pela
ética, vejamos:
O Tabelião de Notas, ao desenvolver atividade
pública identificada pela confiança, tanto do Estado como dos particulares que
o procuram, é escolhido livremente pelas partes, independentemente da
residência e do domicílio delas e do lugar de situação dos bens objeto dos
fatos, atos e negócios jurídicos. A competição entre os Tabeliães de Notas deve
ser leal, pautada pelo reconhecimento de seu preparo e de sua capacidade
profissional e praticada de forma a não comprometer a dignidade e o prestígio
das funções exercidas e das instituições notariais e de registro, sem
utilização de publicidade individual, de estratégias mercadológicas de captação
de clientela e da intermediação dos serviços e livre de expedientes próprios de
uma economia de mercado, como, por exemplo, a redução de emolumentos.
Percebe-se a subsunção do disposto no art. 166,
inciso VII, do CC, ao art. 9º da lei Federal 8.935/1994, que veda ao tabelião
de notas a prática de atos de seu ofício fora dos limites territoriais do
município para o qual recebeu delegação. Desse modo, tendo o legislador
expressamente proibido a realização de atos notariais além da esfera de
competência atribuída, eventual ato lavrado em desconformidade será considerado
indevidamente formalizado e, por conseguinte, declarado nulo.
O art. 214 da lei de registros públicos determina
que as nulidades de pleno direito, quando comprovadas, devem ser reconhecidas
de imediato, com a decretação judicial após a oitiva dos envolvidos. O
dispositivo também autoriza o juiz a bloquear a matrícula imobiliária, de
ofício e a qualquer momento, sempre que a continuidade dos registros puder
ocasionar danos de difícil reparação.
A jurisprudência tem aplicado esse entendimento de
forma rigorosa no contexto dos atos notariais praticados fora da circunscrição
territorial. O Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Ceará, ao
julgar o recurso administrativo 8500029-21.2019.8.06.0106, reafirmou que a
realização de atos em município diverso daquele para o qual foi outorgada a
delegação constitui infração legal grave, passível de sanção disciplinar
proporcional. No mesmo sentido, o TJ/SP, no julgamento da apelação cível 0004731-30.2015.8.26.0417,
declarou a invalidade de escrituras lavradas por tabelião em município estranho
à sua competência, destacando a violação ao art. 9º da lei 8.935/1994 e ao art.
215 do CC. Já o TJ/MG, ao analisar o processo 1.0000.00.164519-1/000(1), reconheceu
a nulidade de ato de revogação de testamento praticado por tabelião fora da
circunscrição, reforçando que a observância territorial é requisito essencial à
validade do ato.
Esses precedentes convergem para uma diretriz clara:
a extrapolação dos limites da delegação notarial compromete não apenas a
legalidade, mas também a segurança jurídica e a confiança coletiva na fé
pública, razão pela qual deve ser coibida de forma exemplar pelo Poder
Judiciário.
A nulidade do título se distingue da nulidade do
procedimento de registro porque, enquanto aquela impede nova apresentação ao
registro, esta admite reapresentação. Por exemplo, quando se comprova a
falsidade ideológica, o título não pode ser novamente apresentado. Já no caso
de ausência de algum documento comprobatório, por exemplo, é possível
apresentar novamente o documento faltante, permitindo o registro. A nulidade
absoluta do registro pode ser declarada pela via judicial ou administrativa, ao
passo que a nulidade do título exige reconhecimento judicial. Em ambas as
hipóteses, a retirada dos efeitos depende de ato formal de cancelamento. Acerca
da nulidade e a repercussão social, tem-se entendimento jurisprudencial
do cancelamento de todos os atos subsequentes ao registro anulado.
"Determinado judicialmente o cancelamento de um
registro todos os demais que nele se fundam não mais subsistem no fólio real.
Não há necessidade de que o magistrado determine expressamente o cancelamento
de todas inscrições subsequentes ao registro cuja ordem de cancelamento teve
objeto. É dizer, cancelado o registro rompido está o elo da corrente filiatória
e os registros que nele se originaram tornam-se viciados, não podendo
subsistir. O princípio do trato consecutivo permite concluir que por consequência
do cancelamento de um ato precedente, os demais que foram praticados com
suporte naquele, não mais subsistem" (1a VRPSP, Processo 587655/9/00, Juiz
Oscar José Bittencourt Couto, j. 23/10/2000).
De qualquer forma a participação dos titulares que
possam ter seus interesses prejudicados pelo ato de cancelamento é condição
indispensável para que este se realize. Tal exigência decorre da Constituição,
pois ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Essa
participação não precisa ser ativa ou efetiva. Basta, por exemplo, que o réu
seja citado para que a decisão judicial produza efeitos em sua esfera jurídica,
ainda que a citação tenha ocorrido por edital e ele tenha permanecido revel.
Por outro lado, a ausência de citação, em regra, impede que seus direitos sobre
o bem sejam suprimidos.
Nesse aspecto a repercussão do presente estudo se
amplia, justamente porque esse efeito em cadeia de nulidade de títulos
subsequentes, faz nascer a responsabilidade civil objeto de nulidade de atos
notariais e registrais que é suportada pelo Estado, conforme entendimento do
STF que decidiu no Tema 777, que o Estado responde, objetivamente, pelos danos
causados por notários e registradores, conforme ementa:
O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos
tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem
dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos
de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. STF. Plenário. RE
842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info
932).
Nessa linha, é plenamente defensável a tese de que o
tabelião cuja serventia tenha sido prejudicada pelo deslocamento indevido de
outro notário ao seu território possa demandar judicialmente a reparação de
danos em face do Estado, com fundamento na responsabilidade objetiva
reconhecida pelo STF no Tema 777 da repercussão geral. Isso porque, ao permitir
ou não coibir a prática ilícita, o ente estatal compromete a arrecadação
tributária municipal (ISSQN), fragiliza a sustentabilidade econômico-financeira
da delegação e desestrutura a ordem territorial assegurada em lei, transferindo
para o titular local o ônus de suportar prejuízos diretos - como a perda de
atos que legitimamente lhe competiam - e indiretos, derivados da quebra da
confiança social na fé pública notarial. Nessa hipótese, o Estado responde
objetivamente pelos danos causados, cabendo o regresso contra o delegatário
infrator.
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Fonte: Migalhas